Na hora do almoço, os cavaleiros se reuniram na sala de refeições, onde Saori os aguardava. Quando todos estavam finalmente reunidos, os pratos passaram a ser servidos nas mesas por funcionários do hotel.
Dentre os cavaleiros que apreciaram a refeição desde o primeiro prato, estava um sem apetite alguma. As preocupações lhe reviraram o estômago.
- Você está bem, Mu? – Leão questionou o tibetano, sentado ao seu lado, que parecia brigar com o purê de tonalidade creme que havia em seu prato. - Mal tocou na comida...
- Apenas não estou com fome, Aiolia. – Mu respondeu, desatento ao próprio desânimo.
- Parece apreensivo. – O grego afirmou, analisando a expressão fechado do cavaleiro de Áries. - Por que não conta logo o que está acontecendo? Sabe que desconversar não funciona comigo.
Mu bufou, se perguntando se Aiolia não percebia que ele não queria conversar. Precisava ser deixado em paz com seus pensamentos dolorosos, que lhe extorquiam a motivação.
Se estivesse certo, aquela missão para a qual se preparavam provavelmente seria um desastre. Ele e os demais teriam que embarcar em uma empreitada extremamente duvidosa, um caso já praticamente perdido.
- Eu tenho uma teoria para o que está acontecendo. – Confessou ao guardião da quinta Casa, que o mirava com preocupação.
- Me conte. – Aiolia esboçou um pequeno sorriso. Normalmente Mu contaria suas conclusões a Dohko, Aiolos, Aldebaran...era a primeira vez que confidenciava suas suspeitas para ele.
Sabia que Mu o achava explosivo e inconsequente, e que isso fazia o tibetano ponderar profundamente sobre o que deveria permiti-lo saber. Estar sendo a válvula de escape do outro era como receber um voto de confiança.
O ariano então percebeu o que estava prestes a fazer. Aiolia surtaria se soubesse de suas suspeitas e o pânico se espalharia entre os defensores de Athena. Não poderia contar.
- Acho que essa não é uma boa ideia. – Áries disse, simplesmente, levantando-se da mesa. – Com sua licença, cavaleiro.
O leonino o olhou partir do salão. Ficara estarrecido com aquele comportamento do quase namorado.
Por que Mu o tratava daquela forma? Por que o esnobava daquele jeito? Por que não confiava nele?
A mágoa do grego ficara evidente para todos os que permaneceram sentados à mesa. Um deles se levantou em seguida, a fim de encontrar Áries sozinho.
O outro cavaleiro de ouro seguiu Mu pelo corredor, até chegar no pátio, que o tibetano cruzava vagarosamente. Ele abordou o ariano como mera formalidade, uma vez que sabia que sua presença fora percebida há bastante tempo.
- Mu, posso falar com você? – Dohko pediu, enquanto o outro se virava em sua direção.
- Absolutamente, Mestre Ancião. – Áries fechou os olhos, ciente de que tratava-se de um assunto extremamente sério...como suspeitava.
Houve um silêncio fúnebre entre os dois cavaleiros. Ambos estavam atormentados desde o dia anterior pela reunião que Athena fizera e, principalmente, pelo pouco que lhes fora revelado. Suas mentes borbulhavam em temor pelo que estava por vir, e em encorajamento para a luta iminente, a única realidade que verdadeiramente conheciam.
- O que você concluiu? – Dohko perguntou, sem rodeios.
- Com a descrição da Deusa, pensei em Plutão, o deus romano que foi historicamente inspirado em Hades, segundo diz-se. – O ariano também se apropriou da abordagem direta.
- Isso explicaria os espectros de gladiadores romanos estranhamente semelhantes aos espectros de Hades. – Libra analisou as conclusões, e remeteu-se a outra coisa que percebera. - Soube que no Sistema Solar, Plutão foi rebaixado a planeta anão?
- O nome do astro é o mesmo do deus romano do qual estamos falando. – Áries salientou, apesar de não entender o ponto que Dohko queria abordar.
- Assim como acontece com muitos outros astros. – O Mestre Ancião suspirou, transtornado com sua própria teoria.
- Os planetas possuem nomes de deuses romanos e...oh! Será que é isso? – Os olhos do tibetano se arregalaram com um espasmo involuntário. Pareciam prestes a saltar das órbitas.
- Receio que explicaria a movimentação dos astros. – Dohko prosseguiu, fechando os olhos em antecipação. Um árduo combate estava por vir.
- Os planetas estão sendo controlados por seu deus romano correspondente! Céus... – Mu exasperou-se, levando uma mão para tapar sua boca. Estava incrédulo, completamente mortificado com a informação. - Já lutamos contra deuses, mas enfrentar tantos de uma vez seria insanidade!
- Mu, acalme-se. – O chinês aconselhou.
- Dohko, se estivermos certos, as chances de vencermos são ínfimas! – O tom de voz do ariano se elevou anormalmente, o que foi assustador para os dois.
- Elas sempre foram, meu bom amigo. – Dohko levou a mão até o ombro do tibetano aflito. - Mas nada devemos temer enquanto tivermos Athena ao nosso lado.
- E o Prometeu? Onde ele se encaixa nisso? – Apesar de aturdido, Mu percebeu que ainda faltava uma peça do quebra-cabeça. – Sei que ele está controlando asteroides, porém qual é a associação dele com esses deuses romanos?
- Eu não sei. – O libriano admitiu, tentando enxergar além dos fatos. Queria extrair uma resposta precisa, necessitava de uma explicação. - Quero investigar. Sei que Athena não vai nos contar, então sugiro que busquemos a verdade por conta própria.
- Eu concordo. – Levemente recomposto, Mu assentiu. - Por onde começamos?
- Eu tenho uma sugestão. – Libra sinalizou com a cabeça, apontando para o corredor que levava à biblioteca do hotel.
- Vamos. – O ariano compreendeu o gesto.
Juntos seguiram para a biblioteca, onde torciam para encontrar informações relativas aos estranhos fenômenos que assolavam o planeta e, a nível ainda maior, o Sistema Solar. As coisas estavam ficando realmente sérias, de uma forma que os outros cavaleiros ainda não compreendiam.
***** Em Atenas *****
Shaka olhou seu prato de comida vazio com certa melancolia.
Normalmente, adorava estar certo. E como adorava! Mas gostaria de ter se enganado desta vez. Queria muito estar errado quanto ao palpite, que formulara no dia anterior, de que Ikki estaria abalado demais para voltar ao Santuário. O prato de almoço vazio o lembrava do horário.
Se o cavaleiro de Fênix fosse encontra-lo, teria ido pela manhã, para que treinassem enquanto houvesse sol. A ausência até o presente momento denotava que o leonino não iria.
Amaldiçoou Jabu mentalmente. Se ele não tivesse interrompido...
“...Ikki teria me beijado.” – Corou com o próprio pensamento. Esteve tão perto de ceder ao garoto...perto demais.
A convivência com Fênix estava sendo mais intensa e emocionante do que ele esperava. Era assustador estar gostando tanto de vê-lo diariamente. De captar os sorrisos atravessados mesmo quanto Ikki tentava escondê-los, de ter seu cheiro por perto, algo que o lembrava do aroma de uma chuva amena.
Adorava olhar aquela cicatriz na face do cavaleiro de bronze. Era, provavelmente, uma das poucas coisas assimétricas que Shaka apreciava. Preferia a ordem e a tranquilidade, porém se encantava com a agitação que tomava conta do ambiente sempre que Fênix aparecia.
Era impossível não saber quando ele estava por perto. Não somente pelo seu cosmo denuncia-lo, também pela energia quente e penetrante que ele trazia aos ambientes. Tudo parecia mais vivo.
Poderia ter feito com ele algo que jamais considerou com mais ninguém...se não fosse por Jabu!
Mas o virginiano estava determinado a não deixar o cavaleiro que interferiu no momento que poderia ter lhe trazido sensações novas e apreciáveis saísse ileso. Havia arquitetado um plano.
Através do elaborado esquema de Shaka, Jabu poderia se redimir por seus feitos e ajuda-lo a demonstrar algo a Ikki. Algo que o virginiano ainda não entendia muito bem, apenas sentia o maciço desejo de expressar.
Decidido a encontrar o escorpiano, Shaka saiu de sua Casa e desceu as escadarias do Santuário. Fechou os olhos no trajeto, incomodado com a frequência que vinha os mantendo abertos. Ao chegar na entrada, se deparou com o cavaleiro de Unicórnio, que cochilava encostado a um pilar.
Para acorda-lo, o loiro bateu as palmas das mãos com força, e em seguida fingiu que nada acontecera. O garoto acordou em sobressalto, com as feições levemente babadas e o capacete de sua armadura desalinhado.
Assim que Jabu identificou que a figura vestida de trajes de treino, semelhantes aos que usara no dia anterior, era o cavaleiro de ouro que flagrara nos braços de Ikki, ele se levantou num pulo só. Tentou ficar diante do mais velho, porém Shaka era tão mais alto que tornava a tentativa insensata.
- B-bom dia. – Disse, simulando alegria ao vê-lo.
- Saudações, cavaleiro. Jabu, não é? – Virgem observou a confusão do jovem com sua visão extra-sensorial. - Sinto que não fomos devidamente apresentados.
- Sim, sou Jabu de Unicórnio, mais precisamente. – O mais jovem esticou a mão ao indiano, que a ignorou propositalmente.
- Sou Shaka de Virgem. – Ainda ignorando o pedido silencioso do cumprimento tátil, o virginiano retribuiu o anúncio de nomes e Constelações.
- De Virgem? – Jabu quase engasgou numa tentativa de não rir, recolhendo a mão. Ikki provavelmente não concordaria com aquele título do loiro. – Sei!
“Esse pateta acha que tem o direito de zombar da Constelação de alguém enquanto usa uma armadura de Unicórnio?!?” – Shaka se fez de desentendido, no entanto teve vontade de matar o pirralho insolente. Provavelmente o teria feito, caso não precisasse dele.
Após seu acesso de riso reprimido, o mais jovem voltou a adotar a postura respeitosa que deveria ter para com um cavaleiro de ouro.
- Posso ajuda-lo, Shaka de Virgem? – Se conteve para não rir novamente, porém não pôde deixar de salientar. - De alguma forma que o Ikki não ficaria incomodado, é claro.
- É justamente por causa dele que estou aqui. – O indiano fingiu não ser atingido pelo teor das provocações novamente.
- Não o vi hoje. – Jabu reparou. - Ele não veio?
- Não, e espero que esteja ciente de que a culpa disso é sua. – Bradou em um fôlego só e, pela carranca que esboçou, o outro teve certeza que morreria.
- E-estou s-sim. – O escorpiano assentiu, sentindo-se um pouco culpado com a acusação.
- Mas sabe, senhor Unicórnio, sou um homem bastante generoso e ponderado. Por isso lhe darei a chance de se redimir. – Shaka entoou calmamente, surpreendendo o outro e a si mesmo. - Vá ao alojamento dos cavaleiros de bronze e diga ao Ikki que eu exijo a presença dele aqui imediatamente! Ou melhor...leve isto.
Virgem entregou um papel que trouxera na mão esquerda, que não o impediria de ter apertado a mão de Jabu. O menor apenas o olhou com estarrecimento, como se refletisse sobre o que faria.
- O Ikki vai me matar se eu interromper a solidão dele! – O japonês confessou, em dúvida se estava mais apavorado com Shaka ou ficaria caso incomodasse Ikki.
- Você interrompeu um momento bem mais íntimo e sobreviveu. Não tem nada a temer! – O loiro afirmou, impaciente. - Pare de ser covarde e faça isso! Caso contrário, quem irá mata-lo serei eu!
- Você não faria isso... – O escorpiano apelou para a lógica, rangendo os dentes levemente.
- O que você sabe sobre mim para utilizar como parâmetro? – Shaka mirou-o em tom de desafio, com as pálpebras derrubadas sobre seus olhos azuis, cobertos para o garoto.
- Que você é o namorado do Ikki e um cavaleiro de our... – Jabu concluiu seu questionamento. - Até o meio da tarde eu terei retornado, se sobreviver.
O indiano assentiu com a cabeça, e logo voltou à sua Casa. Ele escutou um barulho de motor, que julgou ser o veículo de Unicórnio. Ele não pôde deixar de rir do terror do japonês. Ikki tinha razão sobre ele, precisava admitir.
Tranquilamente, torcendo para que seu plano de atrair Fênix ao Santuário desse certo, Shaka sentou-se para meditar e se entregou à vastidão de sua mente. Mas claro que com um sorriso sarcástico nas feições.
***** Alojamento dos Cavaleiros de Bronze *****
Ikki bufou, deitado no sofá de seu apartamento. Estava cansado de olhar para o teto, uma vez que fizera isso durante a manhã toda.
Pensou em ir ao Santuário, mas como reagiria ao ver Jabu de tocaia na entrada e encontrar Shaka em sua Casa? Morreria de vergonha de ambos!
Estava com o orgulho ferido, era verdade. Em momentos conflitantes, onde seu peito se mostrava preenchido por esse tipo de desconforto, costumava sumir um pouco no mundo, dar um tempo das pessoas em algum lugar quieto e isolado.
Era o que queria. Se via compelido a fazê-lo...porém se sentia preso a Atenas. Não tinha nada para, de fato, fazer lá...
Então por que não conseguia ir embora para clarear sua mente?
Por Shaka. Porque mesmo não sendo capaz de contornar seu ego insatisfeito pela tentativa fracassada de beija-lo para voltar ao Santuário, também era incapaz de se afastar. Queria saber que Virgem estava por perto, precisava sentir que pisava no mesmo solo que o loiro. Já ficara tanto tempo longe dele...
Então a campainha tocou. E ela fora tocada tantas vezes desde que Fênix morava lá que o japonês nem sequer sabia que tinha uma.
Ficou intrigado. Quase todos que conhecia estavam em Roma. Então...
“Será que é ele?” – Ikki ficou atônito com a possibilidade de ser Shaka.
E se fosse mesmo o cavaleiro de Virgem? O que diria para justificar sua falta no treino?
Como um furacão, ele correu até a porta, abrindo-a com os olhos brilhando de expectativas.
“Eu mereço...” – Pensou ao se deparar com Jabu, trêmulo e incerto.
O menor estava, não negaria, com medo. Era perturbador estar ali à mercê das atrocidades que Ikki poderia fazer com ele.
- Então é você? – Ikki ralhou, irritado com sua própria ingenuidade.
“Como pude ser tão fútil? Shaka jamais sairia do Santuário para vir aqui!” – Se censurou mentalmente. Estava se tornando irritantemente sentimental em toda matéria que se relacionava ao virginiano.
- Decepcionado? – Jabu percebeu imediatamente que não era a pessoa que Ikki desejava encontrar. - Seu loiro está no Santuário.
- Por que acha que eu... – Fênix pretendia cortar a abordagem desaforada do outro.
- Ele poderia ter vindo sentado na garupa da minha moto. – O escorpiano riu da cara do perigo aos proferir aquelas palavras, no entanto elas saíram sem que tivesse controle. – Mas parece que ele prefere sentar em outro tipo de coisa, não é mesmo?
O cavaleiro de Fênix ficou estarrecido com a ousadia daquele sujeito. Como ousava falar daquela forma com ele?
- Você deve ter desejos suicidas... – Sussurrou em ameaça, erguendo o menor do chão pela armadura. Estava mais que furioso com as palavras intragavelmente desferidas pelo outro, chegara num ponto que se sentia capaz de atear fogo no corpo do escorpiano simplesmente com o olhar.
- Acredite em mim quando eu digo que estou aqui contra a minha vontade! – Unicórnio se deu conta do que fizera. Em poucos dias teria seu nome escrito numa lápide se não amenizasse a situação. - Só vim porque ele me pediu para lhe entregar isto!
Quase socou o pequeno compactado de papel contra o peito de Ikki, tremendo horrores. Foi jogado ao chão assim que o outro percebeu a carta, que agora estava sob o seu domínio.
Lançou um olhar mordaz para Jabu, que ficou estático no chão pelo aviso silencioso, e desdobrou o bilhete. Sorriu involuntariamente ao ver aquela bela e graciosa grafia adornando o papel de tonalidade marfim.
“Ele não veio mas me mandou um correio elegante. É isso mesmo?” – Quase riu de sua conclusão, todavia guardou o rompante de felicidade para si. Não queria diminuir o grau de ameaça depositado sobre o outro japonês, que lhe mirava com curiosidade.
Ikki ignorou-o, e tratou de ler a mensagem enviada pelo virginiano. Reconheceu que era dele, mesmo sem identificação alguma, já pela primeira frase. A forma de escolher as palavras, as combinações inusitadas e, claro, a letra impecável e corrida. Tudo combinava perdidamente com Shaka.
Era dele, não tinha dúvida alguma. Jabu fora útil, afinal, por mais que relutasse em aceitar.
Deixando os devaneios de lado, mergulhou na carta.
"Te esperei a manhã toda, e saiba que é uma tremenda descortesia se comprometer a encontrar alguém e não comparecer. Você deveria vir se desculpar!
E caso não pretenda fazê-lo, aposto que está sentindo a minha ilustre falta. Então por que não vem me ver?
E você também precisa lavar essa mochila. Está horrores de encardida e isso tem me incomodado. Venha buscá-la, ou irei atira-la escada abaixo.
Resumindo, como não tenho coisa melhor para fazer hoje, acho que posso te dar uma segunda chance de estar comigo.
Apenas venha, Fênix! E seja breve!
PS: Não fique se achando."
Ikki não pôde conter um sorriso de êxtase ao concluir sua leitura. Teve que reler algumas vezes para acreditar que não estava equivocado em seu entendimento.
“Ele me pediu para ir encontra-lo. De sua forma arrogante e desdenhosa, usando desculpas para ludibriar suas reais intenções...mas está muito claro! Ele quer me ver!!!” – Exclamou mentalmente, tão radiante que nem se lembrava mais da presença de Unicórnio.
Este se reafirmou ali com um pigarreado forçado, que despertou o olhar de Fênix em sua direção. O mais velho o encarou com desprezo.
- Por que você ainda está aqui? – Ikki questionou, melindrando o outro. – Por acaso quer se certificar de que estragou tudo ontem?
- Já que pensa assim, quero contar uma coisa. – Jabu decidiu que ter Ikki como aliado seria bem mais inteligente naquelas condições. - Ele só fica de olhos abertos quando está com você. Suponho que isso seja importante.
O cavaleiro de Fênix congelou com a informação por alguns instantes. Imaginou que Jabu não compreendesse a relevância do que acabara de contar porque nunca presenciou Shaka em combate.
Os olhos fechados são o maior recurso do loiro, e também um sólido apoio para suas convicções espirituais, que lhe compeliam a acreditar na natureza humana que ele enxergava através dos olhos da alma, e não do corpo.
Mas Shaka estava se comportando de modo diferente com ele. Não bastava ao cavaleiro de Virgem vê-lo com os olhos do espírito. Queria vê-lo literalmente, presenciar seu corpo.
Nem acreditava que estava conseguindo. Estava saindo do estagnado patamar de paixão platônica para um mais concreto. Passara a ver uma possibilidade real de conquistar o amor do santo de ouro.
- Fênix? Ainda estou aqui! – Jabu interrompera o devaneio do leonino.
- Não te perguntei nada! – Este não lhe dera muita atenção, partindo na direção de sua moto. Iria à Casa de Virgem imediatamente.
O outro permaneceu no chão, agradecido por não ter morrido nas mãos de um cavaleiro da mesma deusa que ele.
Sem mais se importar com Unicórnio, Fênix se dirigiu ao Santuário em seu veículo. Não tardou a chegar em seu destino, e avançou como uma flecha até a sexta Casa. Estava tão animado!
Ao chegar, se deparou com Shaka em meditação, como esperava. O virginiano abandonou sua levitação e desfez sua postura, abrindo os olhos para ver o garoto.
Ambos queriam sorrir. Estavam juntos novamente.
- Queria me ver? – O mais jovem se aproximou, estremecido com aquele olhar sobre si. O mesmo olhar que, agora sabia, só era visto com tanta frequência por ele. Era reconfortante pensar que aquela visão de sonhos lhe pertencia.
- Não sei do que você está falando. – Virgem teve de se conter para não corar feito um juvenil apaixonado. Mas algo no que vira o incomodou. - Esqueceu de fazer a barba, Fênix?
- Estava de mau humor. Acabaria me cortando se... – Ikki pretendia explicar, porém suas palavras se quebraram ao meio com o olhar que lhe foi lançado.
- Não gosto de vê-lo assim. Você fica tão adulto. – O indiano se amaldiçoou por deixar que seus desejos e aspirações ficassem tão evidentes. Mas não conseguia evitar! - Faz parecer que me ausentei por tanto tempo...
- Não foi culpa sua. – O cavaleiro de bronze entendeu do que se tratava. Shaka não gostava de pensar que perdera aquela curta evolução na qual ele se transformou de um adolescente para um homem. - Eu entendo. Era o seu dever como cavaleiro.
O loiro pensou nas palavras do mais jovem por alguns segundos. Ele estava certo, não fora culpa sua. Então por que se sentia tão triste por seus anos de ausência?
Por que queria ter estado com ele no momento em que o garoto abrandou as revoltas de sua postura beligerante e passou a ostentar um coração firme e conselheiro?
Por que desejava que Ikki tivesse lhe entregado em mãos as flores de lótus, com um de seus sorrisos mediais pouco explicativos sobre suas reais intenções, e não em seu túmulo?
Por que queria ter passado com ele todo o tempo em que esteve morto, e isso lhe parecia ser muito mais óbvio que estar preocupado com seus deveres de cavaleiro que estiveram pendentes nesses três anos?
- É fácil de resolver. – Ikki quebrou sua linha de raciocínio, alisando a própria barba rala com as mãos calejadas.
- Realmente. – Shaka sorriu, satisfeito com a ideia que teve. - Você já sabe onde é o banheiro. Tem todo o tipo de aparatos para barbear no armário sob a pia.
- Obrigado. – O japonês também pareceu contente com a ideia.
Seguindo o conselho do mais velho, Fênix se dirigiu à residência de Virgem, onde seguiu direto para o banheiro. Mirou alguns objetos estranhou que encontrou pelo caminho, semelhantes a abajures de papel, mas logo chegou ao local que desejava.
Lá encontrou giletes novos e uma quantidade considerável de espuma para barbear. Era curioso, considerando que Shaka mal tinha barba...somente uma fina e adorável penugem loira no queixo, que parecia coçar muito. Ikki riu da própria constatação.
Quando concluiu sua tarefa, secou o rosto numa toalha de tonalidade laranja. Enquanto enxugava os últimos vestígios de água de sua face, seus olhos se voltaram para a porta diante do banheiro. A porta do quarto de Shaka.
Ikki entrou em um monólogo consigo mesmo sobre entrar ou não ali. O loiro ficaria furioso se soubesse que ele entrara em um cômodo da casa no qual não fora convidado...mas era incapaz de se conter. Leonino, curioso e explorados que era, não pôde evitar.
Antes que tivesse oportunidades para racionalizar a situação, estava ele dentro do aconchegante quarto. Era, além de iluminado e convidativo, cheiroso. Um incenso recém-apagado deixava uma fina trilha de fumaça no ar.
A cama era enorme, uma autêntica king size, e os lençóis e o fino edredom que a embrulhavam eram de um tom agradável de verde oliva.
Foi impossível não imaginar Shaka deitado ali, com os enormes cabelos loiros espalhados por toda a cabeceira. Mais impossível ainda foi não desejar acompanha-lo.
- Se perdeu? – O tom sarcástico de Virgem se fez ouvir atrás dele.
Ikki não soube como reagir. Como explicaria a maldita invasão?
Shaka não esperou a resposta.
- O que quer fazer hoje? –Estava quase rindo do flagra cômico que dera em Ikki. Provavelmente estaria furioso se não tivesse visto o japonês tão adoravelmente sorridente ao olhar sua cama.
- O que são essas coisas espalhadas por toda a sua Casa? – O japonês ignorou a pergunta do outro e fez a sua própria.
- Elas fazem parte do meu plano. – O loiro disse, sem dar muito ênfase à própria abordagem metódica da situação. – E preciso de você vivo para concretiza-lo. Caso contrário, essa invasão ao meu aposento teria lhe custado caro.
- E o que planejou? – Mais uma vez esmagado pela curiosidade, o mais jovem pretendeu desvendar do que o outro estava falando.
- Só saberá à noite. – Shaka percebeu a expectativa reluzir dos olhos azuis do menor. Expectativa que ele iria arruinar. Era sua vingança pela bisbilhotice do garoto.
- Vai fazer suspense até lá?!? – Exclamou Ikki, deixando um momento de drama se apossar de si.
- Vou. – O virginiano assentiu, com evidente descaso. – E obrigado por ter se barbeado. Agora sim parece o moleque de bronze que conheço.
- É a sua maneira de dizer que estou bonito? – Fênix sorriu, corando levemente. Um elogio vindo de Shaka lhe faria ganhar o dia. Quiçá a semana...ou até o mês.
- Eu não sabia que você se tornou um caçador de semânticas, Ikki. – O mais velho riu baixinho, em um deboche amigável.
Os dois se olharam, daquela forma que os prendia como duas presas prensadas entre as garras de um predador implacável. Os dois pares de olhos azuis pareciam ter sido feitos para admirarem-se longamente, compartilhando daquela mútua paz que encontravam um no outro.
- Está todo sorridente hoje. Nem retrucou nada que eu lhe disse. – Shaka quebrou o silêncio há pouco estabelecido, porém sem interromper o contato visual. - O que está acontecendo com você?
- Ficou chateado por eu não ter aparecido mais cedo, preparou uma surpresa para mim, não tirou meus sentidos ao me flagrar no seu quarto...isso significa algo. Sei que significa. – Ikki fora direto, e se sentiu estremecer com as próprias palavras.
O loiro não soube o que dizer. Era verdade. Realmente significava algo.
- Não precisa responder. Estou aprendendo a apreciar as verdades que seu silêncio diz. – O leonino sorriu para ele, de um modo que o desconcertava com uma facilidade quase tangível. - E verdades essas que para você são difíceis de entender, admitir e demonstrar. Principalmente demonstrar...mas veja só! Você está tentando!
E Shaka estava perdido com aquelas palavras. Sua racionalidade pareceu entrar em pane, e a ela sempre recorria, mesmo quando elucidava questões de ordem sentimental.
- Obrigado. – O toque repentino em suas mãos o fez tremer. Ikki as tomou entre as dele, como um gesto de carinho e gratidão.
- Ikki...eu...acho que deixei água fervendo. – Virgem desconversou, tentando se desvencilhar das mãos fortes que acariciavam as suas tão docemente. Não sabia lidar com aquilo...com a explosão que sentia em seu peito com aquele toque, aquele olhar, aquelas palavras...
“O que está acontecendo comigo?” – Gritou em pensamentos, e estava compelido a fazê-lo de verdade...até ter outra súbita sensação nas mãos. Um toque mais aliciador, mais quente.
- Shaka... – A voz de Ikki estava tão rouca que chegava a parecer áspera aos ouvidos.
- Sim? – O indiano olhou para as próprias mãos, agora sendo rigidamente utilizadas para que o menor o puxasse em sua direção.
- Vem cá... – Fênix reafirmou, diminuindo consideravelmente aquela distância entre os dois.
- O que? – Shaka corou violentamente com aquela forma calma e sensual com a qual o outro cavaleiro estava se dirigindo a ele.
- Apenas venha. – O japonês não parecia disposto a soltar suas mãos de jeito nenhum. - Não é a mesma coisa que disse na sua carta?
- Por que, Ikki? – Estava se sentindo uma libélula grudada na língua de um sapo. - O que pretende com isso?
- Conseguir qualquer coisa de você. – O mais jovem fora direto e objetivo, da forma que o outro relutantemente apreciava.
O cavaleiro de bronze não tinha ideia do que estava fazendo, mas era tarde demais para recuar. Nem mesmo o pânico estampado nas feições de Shaka o fez reconsiderar. Queria sentir aquele corpo próximo ao seu, nem que fosse num contato singelo e inocente...
- Um abraço? Pode ser assim? Um simples abraço? – Se deu por vencido, soltando as mãos do outro, porém sem se afastar ou interromper a intensa troca de olhares.
Para a sua surpresa, Shaka sorriu. Ikki quase caiu para trás com aquela cena, e mais ainda quando teve seu corpo envolvido pelos braços longos do cavaleiro de ouro. Não imaginava que sua proposta seria tão bem recebida.
Correspondendo, ele se aninhou em Shaka. Os cabelos loiros lhe fizeram algumas cócegas nos braços expostos, e o calor suave que o corpo do outro emanava era tão sublime. Queria ter ficado daquela forma para sempre. Seus braços ao redor da cintura do mais alto, sentindo o contato pleno dele consigo.
Acabou erguendo-se na ponta de seus pés, a fim de diminuir a distância entre seu rosto e o do cavaleiro de Virgem. Aquele contato só ficaria melhor se concretizasse o que fora interrompido por Jabu na noite anterior...
- Não precisa ficar na ponta dos pés. – O loiro brincou, enquanto um de seus braços enrolava-se ao redor de Fênix. Com o outro, levou a mão até os cabelos curtos e escuros do garoto, que ele acariciou lentamente.
- Ora, Shaka, não seja metido! Você não é tão mais alto que eu! – O leonino fingiu zanga, mas logo o cafuné que recebeu deu conta de acalma-lo. Estava tão bom...
Não esperava nada daquilo. Nem a carta, a surpresa estranha ou a forma que foi aceito nos braços do mais velho.
- Eu quero lhe mostrar que sou mais que um cavaleiro de ouro insensível e egocêntrico. – A voz rouca do indiano fez o mais jovem sentir seus músculos se contraírem. - Possuo um lado bastante sentimental, se me permite dizer.
- É difícil de imaginar. – Fênix murmurou, com a voz levemente embargada pela proximidade entre seu rosto e o do indiano.
- Vou lhe mostrar hoje, e você decidirá o que pensar a meu respeito depois disso. – O virginiano estabeleceu. - Amanhã voltaremos ao treino normal, então aproveite este meu dia de libertinagens.
Quando Shaka se sentiu no limiar de ceder ao rosto diante dele, afastou-se do outro. Havia sido o bastante para confirmar suas suspeitas.
“Só me faltava essa...” – Sua mente vagou entre suas memórias buscando um momento em que passou por algo tão novo e aflitivo. Não encontrou nada...
Teria que descobrir como lidar com aquela potente paixão que lhe assolava.
- E a minha mochila? – Ikki pigarreou, constrangido. Pediu um abraço e os dois quase acabaram se beijando.
“De novo! Malditos quases!” – Bradou mentalmente.
- No lugar que a deixou. – O virginiano respondeu, corado e implorando em seu âmago por autocontrole.
- Não a atirou pela escadaria? – O japonês brincou, suspirando profundamente.
- Ainda dá tempo. – Shaka retribuiu o tom ameno, retirando-se do quarto e observando o menor segui-lo.
Foram até a entrada, onde se sentaram nas escadas e conversaram normalmente. Estavam, na verdade, tentando disfarçar os próprios embaraços por tudo que estava acontecendo entre eles.
O tempo passou rapidamente entre as conversas que tinham. Era impressionante a forma que os dois sempre pareciam ter assunto. Não se conheciam muito, e ao mesmo tempo pareciam ser conhecer profundamente.
Acabaram falando da aversão de Shaka por tecnologia. O leonino ria profundamente do loiro reclamando da obsolescência programada.
- Por que eu precisaria de celular? – Virgem questionou, irritado com a insistência de Fênix no assunto.
- Você poderia ter me ligado ao invés de mandar o Jabu intermediar o seu correio elegante. – Ikki zombou, e logo estava apreciando Shaka corar violentamente.
- Não foi correio elegante! – O loiro defendeu-se, se perguntando se o garoto não teria certa razão. – E é assim que usa o seu celular? Como substituto de correios elegantes?
- Por que a pergunta? – O mais jovem sorriu, destemido. – Está com ciúmes?
- Não me faça rir! – O cavaleiro de ouro se utilizou de sua feição mais sarcástica para fugir da pergunta.
- Imaginei mesmo que não fosse admitir. – Ikki prosseguiu com a provocação, se divertindo cada vez mais com as feições rubras do virginiano.
- Você sempre se acha capaz de prever todas as minhas reações, não é mesmo? – Shaka acusou, olhando-o de soslaio.
- Devo me considerar bom com palpites. – Ikki vangloriou-se, ciente que estava irritando o mais velho.
Por fim, acabaram rindo. Alguns dias antes estariam numa discussão acalorada por conta daquela troca de provocações incisivas. Estavam mudando...
- Vai me contar agora o que são aquelas coisas? – O japonês lembrou-se das lanternas de papel.
- Não. – O mais velho bradou, levemente irônico. – Desista!
- Nem pensar! – Fênix sorriu, entregando-se a um pensamento agridoce que lhe assaltou o peito. – Jamais desisto. Por isso estou aqui.
- O que quer dizer? – Shaka sentiu as mãos tremularem. Seu olhar vacilou por um instante, e o outro percebeu.
- Nunca considerei desistir de você. – Ikki fora direto, abrupto. Sutileza é uma palavra que não existe em seu dicionário. – Nem quando você se foi...
O loiro sentiu a garganta secar como se tivesse sido transportado para um deserto. Seu coração palpitou com uma força avassaladora.
- Você me desconcerta quando fala esse tipo de coisa. – Foi tudo que teve condições de responder, atordoado com a descarga de emoções que lhe invadiu.
- Eu sei. – O mais novo olhou-o bem no fundo de seus olhos.
Aquele magnetismo os paralisou de novo. Como sempre acontecia...
Quebraram aquele contato visual novamente, refletindo sobre seus sentimentos atribuídos um ao outro. O jogo da conquista, que pensavam estar ganhando, se tornava cada vez mais perigoso...logo não haveria mais volta.
- Me diga de uma vez, Shaka! O que são aquelas coisas? – A curiosidade de Ikki o levou a interromper o silêncio súbito que se estabeleceu entre eles.
- Como você é teimoso! – O indiano se deu por vencido. - Está bem, Fênix! Eu lhe explicarei!
Bufou demoradamente, reunindo as palavras necessárias para expor suas intenções ao garoto. Este lhe admirava, maravilhado, como se o mais velho já estivesse falando e que seu assunto fosse algo de seu pleno interesse.
- Já ouviu falar no Festival das Lanternas? – O loiro questionou, a fim de elucidar de onde deveria partir em sua explanação.
- Não. – Ikki respondeu, com um pequeno sorriso atravessado se delineando em suas feições. Shaka teria que lhe explicar absolutamente tudo.
- Bem, é uma tradição antiga de um grupo de budistas tailandeses atearem fogo em lanternas de papel, que voam aos céus e ascendem até as mais elevadas alturas. – Shaka narrou, corando discretamente com o olhar de encantamento que Ikki lhe desferia.
- Isso me parece meio familiar... – O leonino comentou, recebendo um olhar de advertência. – Desculpe. Continue.
- Também há uma tradição hinduísta antiga chamada diwali. Por mais que eu não seja hinduísta, o costume de comemora-lo é tão difundido na Índia, meu país natal, que acabei aderindo. – Virgem prosseguiu, lembrando-se de quão belas as ruas de sua pátria ficavam em sua infância, iluminadas pelas oferendas brilhantes dispostas nas entradas de todas as residências.
O japonês fascinou-se com as duas descrições. Shaka viera de uma terra tão distante e enigmática. Adorava isso no virginiano. Do fato das raízes do loiro serem tão diferentes das suas próprias.
- Ambas são bastante semelhantes. – O cavaleiro de ouro, sem perceber que atrapalhara a divagação do outro, continuou.
Ikki estava intrigado. O rumo que as palavras de Shaka estavam tomando lhe alegrava imensamente, afinal se sentia incluído no mundo do cavaleiro de Virgem. Um mundo que ele não conhecia, e agora estava sendo docemente convidado a entrar.
- Estive impossibilitado de comemora-los nos últimos anos. E sabe...eu decidi fazer isso hoje, por mais fora de data que seja. São comemorações muito importantes para mim. – O loiro lançou um olhar terno a Fênix. - E eu gostaria muito que me acompanhasse nisso. Mas não se sinta obrigado a nada! Pode apenas observar, se quiser.
- Da última vez que me sujeitei a apenas observar, três idiotas varreram sua existência da face da Terra! – O cavaleiro de bronze exasperou-se por um instante ao ter suas memórias remetidas ao tempo sombrio do qual se referia. Porém, a afabilidade do momento o fez retornar a si, e retornar cheio de vontade de participar. - Acha mesmo que eu cometeria o mesmo erro duas vezes?
Shaka sorriu, levantando-se e chamando Ikki com o olhar, para acompanha-lo. O leonino o fez, sendo conduzido para a residência de Virgem por seu guardião. Lá coletaram as lanternas dispostas no chão e as levaram até o lado de fora.
O sol já estava se pondo, e logo o momento propício chegaria. O virginiano retornou ao interior de sua Casa e trouxe consigo dois pratos de porcelana, que continham flores de lótus, velas e incensos em seu interior.
- Esqueci o fósforo... – O loiro murmurou, e Ikki acabou rindo dele.
- Está falando sério, Shaka? – O japonês debochou. – Eu serei o seu fósforo hoje.
Um pouco constrangido com a própria falta de atenção, afinal estava com o cavaleiro cuja marca registrada era o fogo, o loiro voltou a se sentar na escadaria. Fênix o acompanhou, analisando as flores no interior do prato. Tão familiares...
- Apenas me ensine como fazer. – Pediu, em leve tom de súplica. - Eu realmente não sei nada sobre nenhum dos dois rituais.
- Acenda os incensos e as velas com o seu cosmo, Ikki. – O mais velho sugeriu. – Faremos uma mistura dos dois rituais. Não conte por aí que eu emendei os dois em um só, por favor.
Fênix riu fracamente e logo o fez. Poucos segundos depois, a fumaça aromática dos incensos permeou a atmosfera do ambiente. O indiano tomou um dos pratos nas mãos, fechou os olhos e começou a sussurrar palavras numa língua muito intrigante e exótica, aos ouvidos de Ikki. Ele também tomou um dos pratos em mãos, e observou a dança bruxuleante da vela que jazia nele.
Logo Shaka estava falando em outra língua, e o japonês já se sentia estranhamente leve. Não acreditava em deuses e cerimônias, porém era inegável que aquilo tudo, o que quer que significasse, era poderoso.
Quando Virgem concluiu os dizeres proferidos, seus olhos se abriram. Ele deixou seu prato aos pés de uma das estátuas de Buda da entrada de sua Casa, e após falar mais um punhado de palavras estrangeiras, pediu que Ikki fizesse o mesmo.
- Estou admirado, Fênix. Você foi paciente. – Shaka sorriu, agradecido. O cavaleiro de bronze estava sendo uma gracinha, tinha que admitir. – Vamos agora soltar as lanternas, Ikki de fósforo?
- Engraçadinho. – O leonino deu uma cotovelada amigável no mais velho.
Virgem abraçou as lanternas contra si como se sua vida dependesse disso, e uma a uma entregava-as a Ikki, para acendê-las. Elas alçavam voo rapidamente, e logo o céu estava salpicado de pontos laranja brilhantes.
O Santuário parecia tomado por um conto de fadas. O vento carregou algumas das lanternas para mais longe, distribuindo-as por toda a extensão do local.
Uma a uma, elas conferiam inacreditável encantamento ao cenário devastado por guerras. Era como se voltasse a ser um lugar santo, símbolo de esperança.
Quando terminaram de acendê-las, os dois cavaleiros ergueram suas cabeças, admirando o céu. Ikki compreendeu porquê Shaka queria tanto mostrar-lhe aquilo...era tão lindo. Uma visão transcendental, romântica e inesquecível.
Ikki não se lembrava de já ter visto algo semelhante. Duvidava que existisse algo tão profundo quanto ver o céu noturno pintado com as suas próprias estrelas, uma vez que eram cavaleiros das Constelações.
Aquele momento lhe transmitiu uma sensação de paz e familiaridade que ele nunca havia sentido. Pertencia ao mundo de Shaka, afinal.
Esqueceu-se naquele instante de tudo que já perdera. De todos os conflitos que enfrentara. De todas as guerras em que lutara. De toda a dor que marcou sua jornada pelo mundo.
Uma lágrima de alívio foi derramada de sua face. Aquela sensação era a paz plena que ele nunca conheceu?
- Você está feliz? – A pergunta do mais velho o atingiu com a mais aguda nostalgia.
- De uma forma que eu nem sabia que era possível. – Apesar de um pouco emocionado, respondeu com firmeza e elegância.
- Assim como eu. – Shaka confessou, deixando seu sorriso mais amplo se abrir para Fênix.
Aqueles rituais surtiram uma comemoração por estar de volta à vida, para o cavaleiro de Virgem. Estava sendo bem recebido pelo universo, como se este aceitasse seu retorno.
Se sentia completo. Como nunca se lembrava de já ter sentido.
Dividira a cerimônia de anúncio de seu célebre retorno com o cavaleiro de Fênix, e não poderia estar mais feliz por isso. O garoto estava se empenhando em compreender suas aspirações, conhecer sua realidade.
Agora tinha certeza absoluta do que sempre soubera. Ikki era mesmo especial. Alguém em quem poderia confiar. Que não desistiria dele jamais, independente do que os desígnios de suas vidas de cavaleiros lhes fariam.
Não sabia como conduzir uma relação como aquela. Nunca tivera nenhuma parecida! Mas agora queria tanto tentar...estava disposto a aprender.
- Eu quero que me beije. – Exigiu, como se pedisse algo banal.
O garoto olhou-o, incrédulo. Só poderia ter ouvido errado.
A face corada de Shaka lhe alertara que o que entendeu estava absolutamente correto.
“Estou ficando louco. Não pode ser real...” – Ikki tentou se convencer, enquanto observava a feição entediada do loiro. Ele estava esperando!
Não importava se era real ou não. Poderia estar sonhando! Isso explicaria o dia maravilhoso que teve na companhia do cavaleiro de ouro...
Sonho ou não, Ikki não seria tolo de desobedecer. Estava esperando por aquilo há tanto tempo!
A oportunidade não poderia ser perdida. Com isso, levou sua mão até o rosto do mais alto, que fechou os olhos com o seu toque.
“O que? É tão real...” – Se desesperava em pensamentos.
Ikki quase ousou beliscar a bochecha quente que tocava para ter certeza que não estava delirando, mas a sutil aproximação que seu corpo e o de Virgem estavam involuntariamente realizando lhe pareceu tão mais importante...
Sentiu sua respiração e a do indiano se embaraçarem, e notou uma leve recuada do rosto de Shaka. Estava assustado.
- Não resista. Não desta vez. – Fênix sussurrou, com a voz rouca de ansiedade pela extinção da distância entre ele e seu amado. Finalmente quebraria aquela barreira.
O loiro deixou que a voz de Ikki reverberasse em sua mente e apagasse qualquer vestígio de ressalva. Se entregaria...o beijaria...
E quando o toque chegou, sentiu um choque percorrer o seu corpo. Estava mesmo acontecendo!
Os lábios em doce atrito inicial, ainda se conhecendo, se encaixaram perfeitamente. Logo se abriram, deixando que uma boca sentisse a umidade quente e inebriante da outra.
A saliva de Ikki era viciante, seus lábios pareciam ter sido feitos para se moldarem aos seus. Os cavaleiros puderam um sentir a potência do cosmo do outro naquele sublime encontro, em que se mesclavam apaixonadamente.
Mas logo perderam a calma. A língua de Ikki pediu passagem, e Shaka concedeu. Com a permissão, tudo ao redor pareceu mudar.
Sentiu o cavaleiro de bronze aperta-lo com mais força em seus braços. E suas respirações se tornaram mais esporádicas, como se o ar fosse capaz de atrapalhar o calor que compartilhavam naquele momento.
A língua de Ikki emoldurava os movimentos da sua, se enroscava nela como se precisasse dela para viver, como se aquele toque fosse sua nova maior necessidade.
Ikki também estava indo à loucura com aquele beijo. Era de uma intensidade avassaladora, com desejo e ímpeto que ele jamais esperou provar em Shaka. Significaria isso que o loiro queria tanto quanto ele?
Pensaria nisso depois. Estava disposto apenas a continuar sentindo arrepios se distribuírem por seu corpo pelos toques do virginiano. Os suaves puxões em seu cabelo, as unhas cravadas em suas costas...
“Que fogo esse cara tem...adorei...” – Concluiu, ainda surpreso com a possessividade do indiano. Imaginou que seria Shaka a pensar algo assim dele, e não o contrário.
A língua do mais velho recuou lentamente, e os lábios se separaram pela falta de ar. Então perceberam o estado em que se encontravam: Shaka agarrando Ikki a ponto de quase tira-lo do chão.
- Nossa... – Foi tudo que o cavaleiro de bronze teve forças para dizer.
- Até amanhã, Ikki. – O loiro soltou-o, corado como um pimentão. Ele, literalmente, afastou-se e correu para o interior da Casa de Virgem, deixando o japonês sozinho do lado de fora.
Fênix riu da fuga. Se ele ficou abismado com a voracidade de Shaka, que todos consideravam uma figura santa e acima de qualquer suspeita, imagine o próprio Shaka!
Não podia acreditar no que aconteceu. Havia mesmo beijado o homem sagrado do céu até o inferno e do inferno até o céu. E ousava dizer que, tratando de sua performance, não deixou a desejar. Fora incrível!
Ele olhou para o céu, onde somente as luzes de algumas lanternas ainda eram visíveis. Em seguida, olhou para a Casa Zodiacal diante dele.
Pensou em entrar...mas achou melhor não abusar da sorte. Já havia sido um grande dia por si só.
Sua mochila continuava lá dentro, porém não se importou. Iria embora suficientemente feliz para não se importar com mais nada. Talvez nem dormisse.
Estava tão feliz...
- Até amanhã! – Gritou para o outro, que torceu que lhe ouvisse. – E não seja rude com a minha mochila!
Deixou o Santuário com o sorriso mais tolo e apaixonado que seu rosto era capaz de transmitir...
“Eu beijei o Shaka!” – Sua mente lhe repetia incansavelmente.
Era mesmo real.
Na Casa de Virgem, o cavaleiro de ouro estava deitado no chão, de olhos cravados no teto. Não conseguia acreditar no que fizera.
“Eu pedi para ele me beijar...céus, o que está acontecendo comigo? E que ferocidade foi aquela com o garoto?” – Ele se questionava.
A cena lhe voltou à cabeça. De Ikki apoiado no chão com um pé só, enquanto ele puxava o cavaleiro de Fênix contra si, deixando-o vergonhosamente descabelado e, possivelmente, com as costas marcadas pela força com a qual seus dígitos pressionaram a pele.
Estava se tornando mundano. Muito mundano! Então por que isso não lhe parecia ruim?
“Dedilhar as contas do meu rosário faz sentimentos mundanos desaparecerem. Será que funcionaria para aplacar esta minha insanidade?” – Riu dos próprios pensamentos.
Não, não faria aquilo. Estava feliz demais para considerar as sensações que agora habitavam seu peito alarmantes.
Estava vivo.
Realizara seus rituais.
Dera seu primeiro beijo.
E tudo aconteceu numa velocidade espantosa!
Pensou no que estava por vir. No retorno do garoto no dia seguinte...
Não tinha ideia de como seria. Mas desta vez tinha certeza que Fênix voltaria. O sorriso no rosto dele lhe afirmou isso.
Estava começando algo que não teria forças para interceder. E assim seria. Deixaria e queria que fosse...
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