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História Walking Men - True love ways


Escrita por: caulaty

Notas do Autor


"True love ways" - Buddy Holly

Capítulo 5 - True love ways


 Inverno de 1959 – Nashville, Tennessee

 

Todo o mês de janeiro e boa parte do de fevereiro foram dedicados à seleção de músicas. Escrevia dia e noite, andava sempre com olheiras escuras sob os olhos, mas um sorriso gigantesco no rosto. Kyle encontrou a caminhonete dele estacionada na saída da universidade por diversas vezes, mesmo quando não haviam combinado nada. Kenny estava quase sempre mordendo um lábios e lendo algum garrancho em seu caderninho azul, os fios dourados de cabelo sujo caindo sobre o rosto. Aquela caminhonete estava sempre imunda por dentro – e por fora – com migalhas de comida e latas de cerveja. O fedor de cigarro estava tão impregnado no banco que nunca passava. Kenny sempre tirava a bagunça do banco do passageiro às pressas para que Kyle pudesse se sentar, porque nunca se lembrava de fazê-lo antes.

Stan passou aqueles meses ocupado com a construção da casa. Erguiam uma adorável morada de apenas um andar, com três quartos, pois Annie sempre disse que queria ter muitos filhos. Quando encontravam-se para comer em uma lanchonete e falar sobre as letras, Stan esfregava os olhos cansados e comentava sobre como era bom falar sobre outra coisa que não escolhas de tinta para pintar paredes que ainda nem existiam. Kenny sempre lhe dava dois tapinhas nas costas com orgulho ou apertava o seu ombro.

Kyle também dormia pouco. Havia uma ansiedade ardente em seu peito, uma excitação somada ao medo de contar aos pais sobre seus planos. Eles teriam que saber alguma hora, não teriam? Não fazia ideia de como conseguira manter a boca fechada durante tanto tempo. Responsabilizava os estudos por seu isolamento, mentia frequentemente que passaria o dia inteiro na biblioteca, quando na verdade estava em reuniões na casa de Cartman.

Lidar com Cartman era infernal, exatamente como Kyle sempre soube que seria. Kenny e Stan não pareciam se irritar tanto quanto ele com os rompantes autoritários inexplicáveis de Cartman sobre como um álbum de sucesso precisava ter pelo menos duas ou três músicas dançantes, duas músicas tristes, uma religiosa, uma romântica. 70% do tempo em que Cartman falava, Stan olhava para ele com as sobrancelhas franzidas e os olhos cheios de estranheza, mas não dizia nada; não sabia coisa alguma sobre vender discos. Kenny parecia relaxado o tempo inteiro, mas levantava constantemente para fumar no quintal, apesar do frio que fazia lá fora. Kyle imaginava que isso se devesse ao fato de Kenny não ser o tipo de pessoa que discute. Era resiliente, flexível, disposto a aprender. Mas ele tinha um limite, e uma vez que esse limite fosse atingido, Kenny só saberia resolver as coisas com os punhos. As pausas para fumar eram sua maneira de regular sua paciência. Parecia dar bastante certo, apesar de Cartman insinuar de mil maneiras diferentes que Kenny era relaxado, preguiçoso. O loiro não se incomodava com essa parte.

-E o nome? - Cartman perguntou de repente. Tinha as duas mãos gordas apoiadas na superfície de madeira da mesa redonda da sala. A superfície estava coberta por papeis cobertos por garranchos, esboços, ideias para os títulos, ordem das músicas. - Temos que decidir isso esse mês.

O homem morava sozinho em um pequeno apartamento localizado em uma avenida movimentada. A sala era, simultaneamente, de estar e jantar. A poucos metros da mesa, encontrava-se o sofá azul quadrado onde Kenny havia se jogado, as pernas abertas, esfregando o rosto exausto. Nenhum deles aguentava mais discutir esse mesmo assunto. Kenny brincava com o maço de Malboro em sua mão direita, batendo com dedo indicador na superfície.

-O nome do disco? - Stan perguntou. Estava sentado à mesa, os cotovelos apoiados sobre o papel.

-O nome da banda. - Kyle respondeu antes de Cartman. Também estava de pé, assim como seu empresário, os braços cruzados em frente ao peito. - Não, nós não decidimos. Mas temos opções.

-E Kyle odeia todas elas. - Kenny complementou, jogando o maço para cima e pegando-o de volta repetidas vezes. Estava vazio.

Debateram muito sobre o assunto enquanto comiam hambúrgueres na lanchonete ou bebiam cerveja no bar. Era sempre um assunto que causava tumulto; Kyle erguia a voz sem se dar conta, Kenny gesticulava e ria de nervoso, Stan abaixava a cabeça e apertava as mechas do próprio cabelo. Nessa época, Kyle começou a entender o quanto Kenny usava o humor para se proteger das coisas que o estressavam.

-Quais são as opções?

-“The blue sailors”. - Kenny disse.

-“Emperor penguin” - Stan falou em seguida.

-Não vai ser Emperor penguin, nós já tivemos essa discussão! - Kyle praticamente o interrompeu, apoiando uma mão na cadeira e a outra na cintura. - Eu não vou passar por isso de novo.

-Tá bom, eu não falei nada! - Kenny ergueu as mãos em defensiva, segurando o pacote amassado de Malboro com o polegar. No dia em que tiveram a discussão, Kenny passou duas horas tentando convencê-lo de que Emperor penguin era um excelente nome, e Kyle não sabia dizer se ele estava falando sério ou apenas queria muito irritá-lo. No fim das contas, Kyle ameaçou quebrar o copo de milkshake de morango na cabeça dele se Kenny não esquecesse a merda do nome.

Um processo muito semelhante ocorreu com nomes como “Ramshackle”, “Wishy-Washy” e “Shenanigans”. No fim das contas, Kyle o acusou de não levar isso a sério e Kenny ficou silenciosamente magoado, mas não disse nada. Mais tarde, no carro, Kyle se desculpou.

-Vocês são retardados? Vocês querem ser uma banda de folk, nada disso é nome de banda de folk.

Kyle queria perguntar “então o que é, gordão?!”, mas as palavras travaram em sua garganta porque, no fim das contas, ele concordava com Cartman. Então apenas respirou fundo.

-Olha só, nós sempre podemos só usar nossos próprios nomes. Eles são curtos, funcionaria.

-O quê, tipo… “Stan, Kyle e Kenny”? - O loiro perguntou, endireitando-se no sofá. - Que criativo.

-Bom, às vezes você tenta ser criativo e acaba sugerindo “Wishy-Washy”, então eu prefiro a rota mais segura. - Kyle respondeu com um sorriso malicioso, sem conseguir convencer com a rispidez em seu tom de voz. Kenny soltou uma gargalhada. Stan sorriu, apoiando a cabeça na própria mão, bocejando.

-Isso poderia funcionar.- Cartman murmurou distraído, esfregando o próprio queixo.

-Wishy-Washy?

-Não, imbecil. Olha só, vão pra casa. Vocês já estão dando nos meus nervos. - Eric prosseguiu enquanto recolhia os papeis da mesa para organizá-los. - Na reunião de quinta-feira, venham decididos. Eu não vou mais perder meu tempo com isso.

 

Com Stan envolvido na construção da casa, desdobrando-se para atender a todas as reuniões e trabalhando feito um cavalo para juntar dinheiro o suficiente para o casamento – embora o pai de Annie fosse pagar a maior parte das despesas – tornou-se muito comum que Kyle e Kenny passassem tempo sozinhos. No início, era um pouco estranho. Por mais que Stanley fosse um camarada quieto, a sua presença era sempre confortável e Kyle acreditava ter muito mais coisas em comum com ele do que com Kenny. Bem. Se fosse honesto consigo mesmo, a questão não se limitava a isso.

Era bom tê-los como amigos. Kyle só se deu conta do quanto precisava disso depois que os conheceu. Expandir o seu mundo para além das paredes de sua casa e o olhar tenso de seus pais, esperando que ele falhasse novamente a qualquer segundo, foi a melhor coisa que já lhe aconteceu desde que se mudou para Nashville. Kyle nunca pensou que fosse ser feliz naquele lugar, nunca acreditou que conheceria ninguém naquela cidade com quem pudesse se conectar realmente. Era diferente do tipo de relação que cultivou por anos com seus amigos em Houston, embora ainda pensasse com carinho em Token e… Só Token. Era diferente até mesmo com Gregory, a quem Kyle amava profundamente, sim. Ainda. Não se falaram mais desde sua última visita, embora ele ainda guardasse uma pilha de cartas fechadas em seu armário, envelopes que nunca foram rompidos. Eventualmente, Gregory parou de escrever. De qualquer forma, enquanto sua ligação com ele fosse bastante intelectual, o sexo confundia tudo.

Deus, como ele sentia falta disso. Talvez não de Gregory, especificamente, mas das coisas que faziam juntos. Sentia falta da pele áspera por uma barba prestes a crescer roçando em seu pescoço sensível, ou pela sua nuca, ou avermelhando a região em torno de sua boca quando se beijavam. Sentia falta do cheiro de um homem, do peso de um homem, os braços de um homem em torno do seu corpo. Sentia falta da adrenalina, do suor, das mãos grandes escorregando pelas suas costas e se entrelaçando aos seus cabelos, sentia tanta falta das coisas que ele nem deveria desejar para começo de conversa, mas desejava, pensava sobre elas todas as noites.

Aí começava o verdadeiro problema de Kyle. Estaria mentindo para si mesmo – e mentia, mentia constantemente – se dissesse que não havia nada demais no seu impulso de encarar Kenny McCormick por alguns segundos a mais do que deveria quando ele tocava o violão ou a gaita. Foi tão sutil no começo que Kyle demorou a perceber o quão envolvido estava pelo caminho que daquelas mãos - calejadas por anos de trabalho - pelas cordas do violão, ou a firmeza com que seguravam a gaita e ele soprava tão atentamente, a boca tão talentosa. Kenny não era um homem bonito, não no sentido comum da palavra, não como Stan. Se fosse honesto, Kyle sentiu muito mais atração por Stanley assim que pôs os olhos nele, porque esse tipo de coisa não poderia ser evitada, mas não foi tolo o suficiente para alimentar o sentimento.

Kenny, ao contrário, foi inesperado. Kyle começou a se sentir diferente perto dele. Era um desses homens com um sorriso que não pode significar coisa boa, sorriso de filho da puta charmoso. Os dentes eram tortos, os olhos eram a coisa mais azul que Kyle já viu em toda sua vida, mais azuis do que os de Gregory. Era impossível comparar os dois, de qualquer forma, porque Gregory conservava uma beleza de quem havia acabado de sair do banho o tempo inteiro, mesmo depois de cavalgar, mesmo depois do sexo. Kenny nunca fazia a barba direito, tinha a pele judiada por trabalhar sob o sol, o que fazia com que parecesse mais velho do que era. Ainda assim, tinha um charme tão jovial, uma risada de menino. Kyle não pensou que essas coisas lhe fossem atraentes. Certo, as pessoas com quem teve contato próximo, como os rapazes do colégio em que estudara, eram muito diferentes. Ele se lembrava de olhar os cowboys que trabalhavam na fazenda de seu pai, aqueles garotos de nem vinte anos que mal falavam com ele e grunhiam ao fazer força física, que tinham a pele bronzeada e aquela dureza masculina com a qual Kyle fantasiava à noite.

Mas aqueles garotos eram apenas isso, apenas fantasias. Se qualquer um deles tentasse se aproximar – o que não aconteceria – Kyle não sabia dizer se desejava tocá-los de verdade naquela época. Eram homens grosseiros, sujos, assustadores por muitas razões.

Kenny não era uma fantasia. Ele era alguma outra coisa. Um amigo, Kyle não tinha dúvida, um amigo mais tátil do que os outros amigos, mais carinhoso e… Um amigo que Kyle sentia vontade de beijar às vezes. Mas ele não era estúpido. Não faria coisa alguma a respeito, sabia muito bem onde essas coisas terminavam. Um soco bem no maxilar, o fim da banda que nem havia começado, a dor ardente da rejeição, reviver a humilhação de descobrirem que ele era “veado”, como gostavam de chamar. Kyle não estava disposto a passar por nenhuma dessas coisas.

Tinha quase certeza de que Kenny não percebia nada de diferente em seu comportamento; o loiro era vocal o bastante para perguntar se este fosse o caso. E era natural que passassem tempo juntos, Kyle pensava, já que eram companheiros de trabalho.

Saíam frequentemente para perambular a pé por lojas de disco no centro, nas quais Kenny sempre deixava seus trocados suados e saía com, pelo menos, dois discos debaixo do braço. “Relíquias”, era como os chamava, álbuns tão antigos que Kyle sequer os conhecia. Lembrava-se muito bem da manhã ensolarada do dia 3 de fevereiro. Estavam uma pequena loja espremida entre um restaurante chinês e uma lavanderia, um lugar com cheiro de madeira onde mal havia espaço para se mover, com uma escada em espiral de ferro que levava ao segundo andar. Naquele dia, Kenny usava uma jaqueta de camurça rasgada sobre uma camisa azul. Seu cabelo estava úmido, como se tivesse acabado de tomar banho. As paredes da loja eram pintadas de bege, mas a tinta descascava. Kyle lembrava-se muito bem das cores e do cheiro dos discos.

Seguiu Kenny pela escada espiral, encontrando um ambiente um pouco mais espaçoso no andar de cima. Não havia nenhum outro cliente ali, mas um homem gordo de óculos e um rabo de cavalo estava sentado no caixa, um grande rádio ligado em cima do balcão reportando as notícias. Kenny o cumprimentou com a intimidade de um amigo.

Após alguns minutos vasculhando, o loiro puxou da prateleira um disco de capa em tons marrons, escrito “WOODY GUTHRIE – Dust Bowl Ballads”.

-Puta merda! Eu procuro essa belezinha há uns dez anos, cara.

O homem no balcão ergueu os olhos com desinteresse, o queixo apoiado na mão.

-Ah, é. Chegou anteontem.

Kyle se aproximou do loiro com um sorriso largo, puxando o disco de suas mãos para dar uma boa olhada na capa.

-Eu amo o Woody Guthrie, cara. - Disse, deslizando a palma sobre a superfície lisa da capa.

-Eu aprendi a tocar violão por causa dele.

-É? - Kyle ergueu o rosto com um sorriso, dando-se conta do quão próximo Kenny estava. O rosto do loiro continuava focado no disco, provavelmente sem perceber a proximidade, mas era possível sentir o calor dele.

Kenny soltou um suspiro apaixonado, imerso em alguma lembrança distante. Tinha um daqueles sorrisos de quem pensava sobre a infância. Kyle, entretanto, não sorria mais. Apenas o observava com os olhos grandes e os lábios entreabertos.

-Foi a primeira vez que eu me senti algo além de um caipira miserável, sabe? - O loiro olhou de relance para ele. - Quando eu consegui meu primeiro violão, eu tinha onze anos. Trabalhei um verão inteiro pra poder pagar o violão usado do filho do padeiro. Meu pai me deu uma surra por gastar dinheiro com uma idiotice dessas. E eu entendo, sabe, a gente mal tinha comida. Mas não importava, porque eu podia fazer música. Eu apanharia de novo se precisasse. - O loiro riu, movendo a cabeça para afastar os fios que caíam por cima do rosto. Enfim, voltou sua atenção para os olhos verdes que nem mesmo piscavam enquanto ele falava. - “This machine kills fascists”. - Repetiu as palavras icônicas escritas no violão de Woody Guthrie.

O peito de Kyle se encheu de algo que ele não soube identificar. Nunca chorou com facilidade, muito menos na frente de outras pessoas – nem se sentia capaz disso – mas por qualquer razão que fosse, surgiu um formigamento em sua garganta e nariz, como se um choro quisesse tomar forma dentro de seu peito. Lágrimas não vieram, é claro, não havia motivo. Mas cada vez mais ficava claro o quanto Kenny tinha pouquíssimo interesse no dinheiro, no sucesso, essas ambições passavam tão longe para ele. Kenny respirava música. Queria que sua arte significasse algo, queria mudar o mundo, era isso que seus olhos diziam. Nesses momentos, Kyle achava excruciantemente difícil não se apaixonar por ele.

-Você sabia que ele foi casado com uma judia? - Kyle perguntou com uma voz pequena. - Criou os filhos como judeus, também. Ele se envolveu muito com as questões dos judeus imigrantes, especialmente na época da guerra, escreveu letras judaicas e tudo, músicas de Hanukkah. Minha mãe gosta muito dele por isso.

Kenny sorriu para ele com afeição.

-Eu não sabia disso. - Respondeu em um tom gentil.

Durante quase cinco segundos, eles não tiraram os olhos um do outro. Quando Kyle começou a sentir o rosto quente, um som fez com que desviasse sua atenção. O homem no balcão aumentou o volume do rádio.

“Interrompemos nossa programação para um boletim especial: três jovens cantores no auge do show business foram mortos hoje na queda de um avião de pequeno porte no estado de Iowa.”

Kenny se virou por completo de frente para o rádio, franzindo o cenho, sentindo o coração martelar no peito. Kyle deu um passo para o lado, saindo de trás do corpo alto do loiro, ainda segurando o disco de Woody Guthrie contra o peito.

“Os cantores foram identificados como Ritchie Valens, 17, Buddy Holly, 22 e J.P. Richardson, conhecido profissionalmente como The Big Popper. A aeronave pertencia a Dwyer Flying Service, uma companhia de Mason City, ironicamente o cenário do proeminente musical The Music Man. O piloto, Roger Peterson, de Clear Lake, Iowa, também foi morto. Os três cantores se apresentaram em The Surf Ballroom ontem à noite e estavam a caminho de Fargo, Dakota do Norte. O pequeno avião caiu no milharal de Albet Juhl por volta de uma hora da manhã, horário local, 500 milhas a noroeste de Mason City. A causa do acidente foi atribuída a condições climáticas.”

 

Deixaram a loja em um silêncio tenso. Kenny levava o disco de Woody Guthrie debaixo do braço. Passaram quase um minuto sentados no carro sem dizer nada. O movimento da cidade continuava intacto seguindo seu fluxo, mas os dois homens se sentiam imersos em um universo diferente. Kyle esfregou o rosto.

-Merda. - Disse.

A resposta do loiro foi um suspiro contido. Ele se esticou para ligar o rádio; levou alguns segundos para que a estação sintonizasse, a estática desaparecendo, dando espaço à voz de Buddy Holly cantando “That will be the day”, um ritmo dançante demais para se encaixar ao estado de luto dentro daquele carro. Por um momento, Kenny teve certeza de que choraria ao som da canção que, em quaisquer outras circunstâncias, levava qualquer corpo a balançar.

 

Well that'll be the day
When you say good-bye
Yes that'll be the day
When you make me cry
You say you're gonna leave
You know it's a lie
'cause that'll be the day
When I die

 

Kyle se lembrou que havia lido em algum lugar sobre a esposa de Buddy Holly estar grávida. Pensou em comentar isso em voz alta, porque sentia vontade de dizer alguma coisa, mas apenas virou o rosto para Kenny, encontrando-o com o queixo levemente erguido e os olhos voltados para o céu através da janela da caminhonete, banhado pela luz do sol, a boca tensa e o olhar melancólico. Então, ficaram os dois em silêncio, apenas ouvindo a voz de Buddy Holly preencher o carro com alegria.

As rádios provavelmente não tocariam outra coisa nos próximos dias.

Kyle apoiou o cotovelo na janela e esfregou a própria testa, absorvido pela necessidade de entender qual lógica existe na morte de uma pessoa de vinte e dois anos. De dezessete.

-Você tem aula hoje? - Kenny perguntou quando a música se aproximava do final.

-Tenho. Mas… - Balançou a cabeça. - Eu realmente não quero ir.

Kenny ligou a ignição do carro, mordendo o interior da bochecha por um momento, como se não tivesse certeza de para onde ir ao colocar suas mãos no volante.

-Quer comprar cerveja e ir beber lá em casa?

Foi a primeira vez que Kenny o convidou. Até aquele ponto, o loiro nunca havia falado muito sobre onde morava, como ou com quem. O ruivo levantou um pouco os cantos da boca, os olhos permanecendo tristes, e fez que sim com a cabeça. Enquanto Kenny tirava a caminhonete da vaga para pegar o trânsito, a música terminava.

 

Na loja de bebidas, decidiram que cerveja não era forte o suficiente e optaram por dividir uma garrafa de George Dickel Tennessee Whiskey. Kyle nunca fazia esse tipo de coisa, ficar bêbado no horário do almoço de uma terça-feira. Céus, se sua mãe soubesse. Mas o que Sheila Broflovski não sabia não poderia machucá-la. A perspectiva de passar tempo na companhia de Kenny lhe era muito mais atraente do que estar confinado em uma sala de aula num dia como aquele. Um dia ensolarado, e ainda assim, cinza.

Kenny morava em um trailer azul-claro estacionado em um terreno gigantesco onde o mato crescia. Havia uma estrutura improvisada de galinheiro, um chiqueiro com três porcos e um cavalo comendo pasto quando chegaram. Kyle abriu um sorriso largo quando o viu.

-Você tem um cavalo?!

-Ele é que me tem. - Kenny disse com um riso fraco enquanto estacionava a caminhonete torta no terreno.

Kyle saltou da caminhonete e correu em direção ao cavalo, diminuindo o passo ao chegar mais perto para não assustá-lo. O animal não pareceu incomodado. Era um cavalo todo manchado de cinza e preto, a crina longa cobrindo seus olhos esbugalhados, doces como os de uma criança. Seu rosto era branco, e o focinho era cinza escuro. Kyle fez carinho na lateral do seu pescoço, sentindo a textura grosseira dos pelos.

-Como ele se chama?

-Barnabé.

O ruivo soltou uma gargalhada, virando por cima do ombro para enxergar Kenny se aproximando com as mãos no bolso do casaco. Nesse meio tempo, o cavalo se aproximou para cheirar o rosto de Kyle. Era tão diferente dos cavalos de corrida que Kyle conhecera no Texas, ou dos cavalos puro-sangue que seu pai comercializava.

-Como pode você ser tão bom em dar nome a um cavalo, mas tão ruim em nome de banda?

-O Barnabé vai comer o seu cabelo se você me ofender de novo.

 

Fazia frio, mas o sol estava forte o bastante para que ficassem ali fora. Kenny colocou dois banquinhos baixos em torno de um punhado de lenha que deveria ter sido uma fogueira em algum momento. Deu comida às galinhas antes de se sentar ao lado de Kyle, que já abria a garrafa de uísque. Ainda levou alguns segundos para que Kyle compreendesse que eles beberiam diretamente da garrafa. Não estava acostumado a esse tipo de coisa, mas sentiu diferença no gosto da bebida barata escorrendo pela sua garganta enquanto seus lábios ainda estavam colados à boca de vidro. Era forte. Talvez esse também fosse o gosto do senso de liberdade.

Kenny acendeu um cigarro enquanto Kyle brincava com o violão dele; sabia muito pouco sobre instrumentos de corda tocados com os dedos, mas tinha uma vaga noção de como reproduzir determinadas canções populares judaicas. A garrafa estava no chão, entre eles.

-Como uma merda dessas acontece? - Kenny perguntou de repente, soprando a fumaça do cigarro.

-O acidente, você quer dizer? - Kyle parou de tocar.

-É. Quer dizer, eles estavam tão… Como, cara?

O ruivo umedeceu os lábios gelados, encarando a pilha de lenha. Não era uma pergunta simples de se responder; na verdade, Kyle não queria saber a resposta. Era assustador. Havia tanto potencial de vida brotando ali em uma carreira tão curta, tão breve, que decolou tão rápido e despencou em chamas, com um avião deixando de funcionar, simples assim. Era assustador, em especial, porque era próximo. Buddy Holly apareceu assim, pioneiro de um tipo de rock que parecia em iminência, um texano jovem exatamente como Kyle. Não fazia sentido. E Kyle não queria entender porque esse tipo de coisa acontecia.

Esticou a mão para dar mais um gole do uísque.

-Parece que a música morreu hoje. - Kenny murmurou com o cigarro na boca.

-Não fala besteira. - O outro respondeu com uma careta pela ardência do álcool, sentindo um alívio falso.

-Eu sei. Mas parece.

Kyle o olhou por algum tempo, pressionando os lábios com aflição. Kenny tinha os olhos e os ombros caídos, céus, nunca o via deprimido daquela forma. Perguntou-se se o estado pioraria quando ele ficasse mais bêbado. Engoliu o acúmulo de saliva, pondo a garrafa de uísque no chão e entregando o violão ao loiro.

-Aqui. Toque algo para o Holly.

Kenny riu.

-Eu deveria ter uma guitarra pra isso.

-Não importa.

Com um sorriso de lado, olhos pequenos e tristes, cabelos loiros caindo por cima do rosto, Kenny alcançou o braço do violão e o ajeitou no colo. Passou um tempo imóvel, as pontas dos dedos acariciando as cordas, sem focar a atenção em algo específico. De repente, começou. A mão de Kenny tocava com tanta naturalidade que se movia por si mesma, quando Kenny parecia estar com a mente em outro lugar, talvez a milhares de quilômetros no céu.

 

Just you know why
Why you and I
Will bye and bye
Know true love ways

Sometimes we'll sigh
Sometimes we'll cry
And we'll know why
Just you and I
Know true love ways

 

Nos primeiros versos, Kyle apenas assistiu. Parecia algo bonito demais para intervir, algo delicado e harmonioso, íntimo até. A música ficava tão diferente quando tocada ao violão, tão mais parecida com Kenny. Ele não sorria enquanto cantava, o que era bastante incomum, mas se encaixava perfeitamente com o tom rouco de sua voz e a maneira com que ele fechava as pálpebras, extasiado e triste, como se cantasse para os céus. O volume baixinho de sua voz foi crescendo, ganhando corpo naquele espaço aberto, com cheiro de pasto e de uísque.

 

Throughout the days
Our true love ways
Will bring us joys to share
With those who really care


Sometimes we'll sigh
Sometimes we'll cry
And we'll know why
Just you and I
Know true love ways

 

 

O loiro deitou a cabeça e esboçou um sorriso doce, os olhos brilhando, muito mais vivos do que há poucos minutos. Fez um contato visual demorado enquanto as palavras melodiosas saíam de sua boca, olhando tão fundo nos olhos de Kyle que o ruivo se sentiu exposto. Quando os versos terminaram, Kenny continuou a tocar o violão, observando Kyle como se esperasse alguma coisa, fazendo um breve sinal com a cabeça para que ele começasse a cantar. O ruivo riu com uma falsa timidez, unindo as mãos entre as coxas, balançando o tronco sem perceber ao som do violão. Era sempre tão bonito como Kenny encolhia as sobrancelhas para tentar se lembrar das notas, mordendo o lábio, pensativo, como se o violão já não fosse uma extensão de si mesmo.

Os próximos versos, Kyle cantou sozinho.

 

Throughout the days
Our true love ways
Will bring us joys to share
With those who really care

Sometimes we'll sigh
Sometimes we'll cry
And we'll know why
Just you and I
Know true love ways

 

Mas Kenny continuou a mover os lábios sem emitir qualquer som, os ouvidos tão abertos para que aquela voz mais doce adentrasse. Ele dançava com os dedos pelas cordas do violão, permitindo que o balanço da música fizesse o resto. Em dado momento, rolou os lábios por dentro da boca e fechou os olhos com força, logo em seguida rindo sem saber porquê. A voz de Kyle parecia ser o remédio para todos os males da vida. Talvez fosse o seu organismo absorvendo o álcool que o fizesse pensar dessa forma.

Finalizou a música com uma melodia suave. Kyle esticou o braço para erguer a garrafa de uísque. Os dois trocaram um sorriso pequeno, demorado.

-Ao Buddy Holly. - Kyle disse. Kenny se esticou um pouco para que a ponta do braço do violão tocasse de leve a garrafa de vidro, simulando um brinde. Kyle deu um gole longo antes de repassar a garrafa ao outro.

-E todos os outros. - Kenny disse, aproximando a garrafa dos lábios. - Incluindo o piloto.

-Incluindo o piloto. - O ruivo respondeu em uma voz triste.

 

Kyle não sabia dizer como havia anoitecido tão depressa. Sabia apenas que o céu estava coberto por nuvens que mesclavam em azul claro, rosa e um alaranjado intenso no horizonte. Kenny morava em uma região isolada que fazia com que o céu parecesse infinitamente maior. Olhando em volta, havia apenas pasto e árvores. O frio caía sobre eles.

Kenny havia feito sanduíches de carne em algum ponto da tarde em que concluíram que fazer uma refeição talvez fosse boa ideia. Kyle conheceu o trailer por dentro, um espaço tão estreito quanto se presumiria, mas ficou surpreso pelo quanto o ambiente lembrava mesmo uma casa. Não enxergou muita coisa, pois não passou da porta, apenas observando enquanto Kenny se movia de um lado para o outro na pequena área da cozinha. Tudo era muito cinza e azul lá dentro, exceto pela bancada de madeira clara e superfície branca. A geladeira e o fogão eram bastante compactos. O sofá embutido só comportava espaço para duas pessoas, mas sobre ele, havia uma pilha de discos. Havia, também, uma mesinha quadrada com duas cadeiras, um cinzeiro cheio sobre ela. Kenny vasculhou os armários e gritou em comemoração ao encontrar uma garrafa de vodka barata pela metade. Já haviam terminado a garrafa de uísque, apenas os dois, o que parecia tremendamente irresponsável. Em algum lugar da sua mente, Kyle sabia que não deveria beber mais.

Mas Deus, como sentia-se bem.

Após algumas tentativas miseráveis assoprando com o rosto assustadoramente perto das fagulhas, Kenny conseguiu acender o fogo da fogueira. Voltou a se sentar no banquinho, adicionado pedaços maiores de madeira ao fogo crescente, pouco a pouco. Kyle não podia compreender como ele estava são o bastante para montar uma merda de uma fogueira sem muita claridade. Devia estar bastante acostumado a esse tipo de coisa. Se tentasse fazer isso, Kyle pensou, certamente seu cabelo pegaria fogo. E isso não seria agradável, não senhor.

Kyle soluçou.

-Você não bebe muito, não é? - Kenny perguntou com um sorriso idiota. Deus, como era idiota aquele sorriso. Kyle o detestava. Detestava como, especialmente agora, aquele sorriso fazia seu estômago formigar.

-Eu gosto do seu cavalo. - O ruivo respondeu, olhando em volta para procurá-lo. Onde diabos foi o Barnabé? E se ele estivesse perdido? E se ele fosse atacado por lobos?

Ah, ele estava logo ali próximo ao trailer, bebendo água da tina.

O loiro soltou uma gargalhada, deitando a cabeça para trás, sua voz ecoando a céu aberto. Kenny devia estar bêbado para rir daquela maneira, Kyle pensou. Nada de engraçado havia acontecido. Mas depois que a risada terminou, o sorriso foi diminuindo em seu rosto e parecendo mais… Melancólico? Como se ele estivesse pensando em algo ruim de repente. O fogo refletia em seus olhos azuis enquanto ele observava as chamas dançarem. Ah, não. Kyle não queria que ele parecesse triste. Nunca. Quando separou os lábios para perguntar o que houve, Kenny o interrompeu:

-Deixa eu fazer uma pergunta. Você acha mesmo que eu não levo isso a sério?

-Ah. É claro que eu não acho isso, Kenny. Ele parece muito bem cuidado.

-Eu não… - Kenny bufou, rindo fraco, abaixando um pouco a cabeça para massagear os próprios olhos usando o polegar e o indicador. - Eu não tô falando do cavalo.

-Então do que você tá falando?

Em sua mão livre, Kenny segurava a garrafa de vodka. Passava o polegar sobre o rótulo vermelho, encarando-a sob a iluminação fraca da fogueira, passando a língua sobre os lábios rachados.

-Sobre a banda.

Kyle piscou várias vezes, como uma criança confusa. Por qualquer motivo que fosse, sentiu-se triste de repente. Era aquele olhar no rosto de Kenny, um olhar tão melancólico que aparecia muito pouco, talvez porque ele sempre estivesse distraindo Kyle com seu sorriso largo e irritantemente charmoso, as suas palavras certeiras, era difícil enxergar através daquela cortina. Sentiu vontade de esticar a mão e tocar seu rosto, perguntando-se se a bochecha dele estaria quente ou gelada. Enquanto se policiava mentalmente para não fazer nada inapropriado, Kenny continuou falando, arrancando-o de seus pensamentos:

-Eu nunca fiz nada que importasse de verdade, cara. Ninguém nunca esperou isso de mim, também.

-Nada que importasse pra quem?

-O quê? - Kenny perguntou como se não tivesse escutado.

-Você nunca fez nada que importasse pra quem? Pra você?

Essa era uma pergunta complicada. Complicada o bastante para que o loiro entornasse mais um gole antes de responder, encolhendo os ombros. Não fazia ideia. Deus, como era difícil articular palavras com aquela quantidade de álcool no sangue. E ao mesmo tempo, Kenny sabia que não se sentiria à vontade para dar uma resposta honesta em outras circunstâncias.

-Não, pro mundo. Eu acho. Sei lá, as coisas importantes pra mim sempre foram meio… Pequenas. Por exemplo, isso daqui importa pra mim. Beber aqui com você, num dia de semana, não ter que estar em nenhum outro lugar que não é onde eu quero. Só a gente, o céu, bebida barata e música. Eu não sinto essa vontade de estudar, de ser gente importante, eu só quero… Isso aqui.

-E música. - Kyle completou com um sorriso vago.

-É, e música. Se eu pudesse viver disso, se eu nunca mais tivesse que limpar merda de cavalo pra comer, se eu pudesse viver de tocar… Não tem nada no mundo mais importante pra mim.

Foi a coisa mais sincera que Kyle já ouviu na vida. Atreveu-se a mover sua mão, mesmo que fosse para se arrepender mais tarde, repousando-a no joelho de Kenny. Ele não pareceu incomodado por isso. Então Kyle apertou um pouco seu joelho sobre o tecido grosseiro da calça, angustiado que não podia sentir nada além do contorno dos seus ossos. Gostaria de tocar a pele dele, de alguma forma.

-Desculpa. Eu nunca quis… Eu não penso isso de verdade. Que você não leva a sério. - E com isso, Kyle removeu sua mão. Kenny passou a garrafa para ele, mas o ruivo não bebeu. - Você me dá vontade de fazer isso pelos motivos certos.

Kenny riu. Verdade seja dita, ele não ouvia gentilezas com muita frequência, nunca aprendeu a lidar com elas. Suas bochechas definitivamente estavam quentes agora, Kyle percebeu pelo rubor. Olhando para ele, ninguém diria que se tratava de um rapaz tímido. Mas era. Olhou Kyle de canto e balançou um pouco a cabeça, não encontrando nenhuma palavra certa para agradecer, “obrigado” não fazia sentido.

-Eu devia ir embora. Já é tarde. - Kyle grunhiu baixo, apoiando a garrafa em sua coxa, escondendo o rosto em uma das mãos. - A minha mãe vai me matar se eu chegar em casa assim.

-Então dorme aí, cara. Você vai acabar beijando um poste se for embora desse jeito.

-Ela me mata mais ainda se eu não aparecer.

-A sua mãe parece uma senhora muito agradável. - Kenny disse, levantando-se, em um tom não tão sarcástico que fez Kyle gargalhar. Levantar-se parecia uma tarefa terrivelmente impossível. Kenny se colocara de pé com tranquilidade, tinha as mãos nos bolsos e uma expressão tão calorosa que o estômago de Kyle se revirava de nervosismo. - Tem uma mercearia a mais ou menos um quilômetro que tem um telefone público. Eu ando contigo até lá. Eu preciso comprar papel higiênico, de qualquer jeito.

A perspectiva de passar a noite naquele trailer era dolorosamente tentadora, e por esse mesmo motivo, Kyle pensou em recusar. Porque aquilo o excitava demais, pisando em um território perigoso com o qual ele não queria se meter. Bem, queria. Mas até mesmo seu cérebro bêbado e imbecil conseguia discernir uma boa ideia de uma má. Mesmo assim, foi tão fácil dizer:

-Claro. Obrigado, Kenny.



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