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História Walking Men - Walking man


Escrita por: caulaty

Notas do Autor


"Walking man" - James Taylor

Capítulo 6 - Walking man


Primavera de 1959 – Dahlonega, Georgia

 

Moving in silent desperation,

Keeping an eye on the Holy Land.
A hypothetical destination,

Say, who is this walking man?

 

Dormir no trailer de Kenny havia se tornado um hábito inocente que Kyle pretendia preservar o quanto fosse possível. Com a chegada da primavera e o frio rigoroso se dissipando, tornava-se cada vez mais agradável dormir naquele trailer que parecia existir no meio do nada absoluto, onde podia-se enxergar as nebulosas no céu e o ar era mais fresco. Kenny entendia das estrelas, das constelações, coisas que aprendeu em um livro de astrofísica do filho de um fazendeiro para o qual ele trabalhara há alguns anos, quando Kenny ainda mal sabia ler. Kyle percebia que poucas coisas foram ensinadas a Kenny por alguém. Das coisas que aquele homem sabia, quase todas, aprendeu sozinho.

Estar sozinho com ele tornava-se cada vez menos assustador, e Kyle não saberia dizer se julgava isso como bom ou ruim. Perguntava-se se começava a enxergar Kenny McCormick como um irmão, o que era agridoce, confortável e decepcionante ao mesmo tempo. Talvez fosse um caminho natural, Kyle pensava, entre pessoas que passavam tanto tempo juntas. Ele não tinha aquele tipo de intimidade com alguém desde… Bem, desde Gregory.

De qualquer forma, era indescritivelmente delicioso ter em quem confiar. Kyle se sentia à vontade perto dele, sentindo cada dia menos peso sobre os ombros, porque tudo a respeito de Kenny parecia genuíno e não havia pressão, cobrança, vergonha. Esses eram sentimentos com os quais Kyle havia se acostumado de tal modo que demorou a se sentir confortável sem eles. Sentia-se nu na presença de Kenny, o que não mudou com o tempo, mas mudou a forma com que Kyle se sentia sobre isso. Era bom. Era bom estar bêbado, era bom cantar tão alto sem ninguém para reclamar, era bom estar fora de casa. Kenny sempre vinha misturado a um pequeno gosto de liberdade de Kyle não entendia muito bem, mas sabia que não queria perder isso.

A presença de Stan tornava tudo mais fácil. Com a chegada da primavera, sentia-se como amigo de infância daqueles dois rapazes que conhecia há nem bem um ano ainda. Era fácil ser tátil com eles, pois eles eram táteis um com o outro, as pessoas mais carinhosas que Kyle já conhecera. Quando bêbados, isolados no terreno onde Kenny morava, não era incomum que eles brincassem como dois irmãos, duas crianças: Stan subia nas costas de Kenny como se ele fosse um cavalo, Kenny relinchava e corria; acabavam sempre caindo e se sujando de terra, mas isso também era parte da diversão. Não foram poucas as vezes que os três adormeceram na cama de Kenny. Apesar dos torcicolos e as dores no braço que sempre vinham na manhã seguinte, Kyle amava essa intimidade. Supria uma necessidade que não tinha nome, uma necessidade que Kyle nem mesmo queria reconhecer que existia.

Pelo fim de abril, Kyle entendeu que não havia nada fraternal sobre seus sentimentos por Kenny McCormick. Tiraram um final de semana para viajar, apenas os três. Stan pareceu pessoalmente ofendido quando Kyle disse que nunca havia visto de perto uma cachoeira.

-Ele leva a natureza muito a sério. - Kenny explicou.

Foi daí que nasceu a ideia. Às seis da manhã de um sábado, Kyle Broflovski se percebia com os olhos ardendo de sono, carregando uma mochila pesada que estava prestes a descarregar na caminhonete de Randy Marsh, estacionada em frente à sua casa. Sheila fez questão de sair com seus chinelos felpudos e seu roupão rosa bebê para cumprimentar esses amigos misteriosos de seu filho, cuja existência ela questionava. Mas lá estavam eles; Kenny colocou a cabeça para fora da janela do passageiro e deu um sorriso largo, parecendo alerta demais para aquele horário da manhã, como se nem tivesse dormido. Estava habituado a madrugar junto com as galinhas, afinal de contas. Stan tinha a cara inchada de sono e um sorriso tímido. Felizmente, Sheila não ficava à vontade antes de passar seu pó de arroz e ajeitar seus cabelos. Kenny sorriu pelo fato de que ela tinha cabelos tão gritantemente vermelhos quanto os de Kyle, um gene do qual não se pode escapar.

Eram duas horas de viagem até Dahlonega. Boa parte do caminho, Stan falou sobre quando seu pai o levava, junto com sua irmã, para nadar na cachoeira de Cane Creek quando eram crianças, e o quanto Kyle adoraria conhecê-la. Kyle não duvidava que isso fosse verdade, mas Stan certamente fazia a coisa parecer mais encantadora do que realmente era. E aos olhos de Kyle, isso era bonito. Stan não falava muito, não tanto quanto ele ou Kenny, mas de vez em quando, ele abria um pouco aquela concha e compartilhava pequenas – mas significativas – lembranças. Era muito bom em escutar, uma dessas pessoas que realmente prestam atenção no que os outros têm a dizer. Quando falava, Kyle fazia um esforço especial para ouvi-lo.

Kenny, no entanto, parecia concentrado demais em alguma coisa que só existia dentro de sua cabeça. Encarava a janela, cantarolava baixinho, batia com os dedos no painel da caminhonete, não falou muito.

Ao chegarem ao condado, a primeira coisa que fizeram foi uma parada breve em um posto de gasolina para beberem café preto e ruim, que por algum motivo, tinha um gosto delicioso. Gosto de estar longe dos pais, gosto de estar longe da universidade, longe da construção da casa, longe do serviço braçal, gosto de liberdade momentânea. Depois, seguiram até o estacionamento do parque e começaram a descarregar as coisas. Havia apenas uma barraca para os três, o que parecia suficiente. Fazia um sol forte que queimava o couro cabeludo.

Até então, quando estavam os três juntos, o sentimento de fraternidade era mais forte. Mas Kyle não estava preparado para o que aconteceria depois do incessante trabalho de montar a barraca a manhã inteira e almoçarem feijão em lata, depois de fazerem a trilha que tornava cada vez mais forte o som ensurdecedor da cachoeira conforme avançavam. Por si, aquele som já era impressionante. O coração de Kyle começou a bater mais forte, talvez pelo esforço que os caminhos da trilha exigiam de seu corpo, mas parecia mais uma angústia que nascia de dentro. Não era medo, certamente que não. Ansiedade, quem sabe.

As cores eram bonitas, ninguém podia negar. Podiam enxergar o céu azul entre as árvores verdes enquanto se aproximavam, bem como a cor escura das rochas onde limo crescia, e eventualmente, o branco da água que caía com força constante, há sabe-se lá quantos séculos, e continuaria a cair independente da existência humana. Não era tão alta quanto Kyle imaginou que seria. O fosso também não era profundo.

Kenny foi o primeiro a arrancar as botas e a camisa. Não havia mais ninguém em vista, talvez porque o verão ainda não chegara, mas fazia um calor agradável o suficiente para colocar os pés na água. A natureza já voltava a florescer sobre o calor protetor da luz do sol.

Esse foi o momento em que Kyle entendeu que seu problema não pretendia ir a lugar nenhum. Continuava ali, firme e presente, um pouco mais aterrador quando viu o tronco nu de Kenny McCormick pela primeira vez. Kyle não percebia a sensação como natural, mas já deveria ter se acostumado a ela. Não era infrequente estar na presença de outros corpos masculinos expostos assim, com essa facilidade, mas era diferente com Kenny. Mesmo com Stan. Parecia errado, e ele esperava silenciosamente que nenhum dos dois notasse seu desconforto.

Quase que no mesmo instante, enquanto desabotoava a camisa azul, Stan perguntou:

-Você não vai entrar na água, cara?

Ao mesmo tempo, Kenny terminava de tirar a calça com os pés e corria em direção ao rio, tomando cuidado apenas com as pedras lisas para não escorregar. Parecia-se com uma criança empolgada ou um cachorro conhecendo água pela primeira vez, como se o rio fosse um brinquedo gigante e novo. Kyle riu, riu de nervosismo e alegria genuína.

-Eu não vim até aqui pra ficar só olhando. - Respondeu, retirando o colete antes de começar a desabotoar a camisa vermelha de flanela, quente demais para o sol que fazia naquele horário. A frase que deixou seus lábios foi dúbia e confusa, mas Stan não prestou atenção no rubor que tomou conta de suas bochechas quentes.

Kyle não queria realmente deixar suas roupas na grama, mas foi isso que Stan e Kenny fizeram, então, não estava prestes a resmungar. De qualquer forma, estava envolvido demais pela tentativa árdua de não encarar, de agir com naturalidade. Não podia evitar a comparação mental instantânea. Stan tinha braços maiores, mais carne e mais músculo, embora Kenny tivesse exatamente o corpo de alguém que fez trabalho braçal a vida inteira, embora suas costelas fossem visíveis sob a pele. Ele era magro de verdade, como alguém que contava as moedas para que não faltasse pão na mesa, mas sempre conseguia o suficiente (nada mais, nada menos). Nada a respeito daquele corpo parecia doente ou fraco. Kyle sempre pensou que o rosto dele era de alguém mais velho, e isso era verdade sobre seu corpo também. Não parecia um rapaz, parecia um homem.

 

Ao cair da noite, acenderam uma fogueira com certa dificuldade por conta da lenha úmida pela chuva que caíra no dia anterior. Era mais pela necessidade de uma fonte de luz, pois mesmo após o pôr do sol, a temperatura continuava agradável. Não era como as noites abafadas de verão, nem como as noites congelantes de inverno. Stan aqueceu o chá que trouxe em uma garrafa térmica verde e o bebeu sozinho, enquanto Kenny soprava a gaita despretensiosamente. Estavam sentados, Kenny e Stan em troncos de madeira, Kyle em uma pedra. O estalo do fogo, a gaita e os sons de pequenos animais na floresta preenchiam o espaço que, outrora, era de um silêncio perturbador, distante dos barulhos da civilização humana.

-Eu queria perguntar uma coisa pra vocês. - Stan disse de repente. Kenny parou de tocar a gaita. - O que vocês acham… Tudo bem se não quiserem, mas eu pensei que a gente podia cantar no casamento. O que acham?

Kenny abria um sorriso que mal cabia no rosto, levando a mão ao peito de forma propositalmente dramática.

-Stanny. Que honra.

-A gente adoraria. - Kyle disse de forma mais carinhosa do que esperava, sentindo um calor crescer em seu peito, sorrindo fraco. Aquilo parecia importante, como um ato simbólico de pertencimento. O convite mais íntimo que já recebera em toda a sua vida.

Stan assentiu com a cabeça, parecendo aliviado. Tinha o sorriso tímido de uma criança.

-Meu Stan vai se casar, cara. Eu nem acredito. - Kenny disse, levantando-se agitado para andar em direção à barraca amarela. - Isso pede por uma comemoração!

-Faltam cinco meses! - Stan gritou em resposta, gargalhando.

Kenny desapareceu dentro da tenda, apenas suas pernas ficaram de fora, pois estava ajoelhado procurando por uma garrafa de qualquer coisa.

-Ele bebe muito, não? - Kyle disse baixinho, mas não havia reprovação em sua voz. Nem mesmo soava preocupado. Era uma constatação simples, como dizer que a água é molhada.

Stan respondeu apenas com um riso, bebendo seu chá quente. Depois disso, deixou a garrafa de lado para pegar o violão que estava encostado em uma árvore. Tudo sobre essa cena parecia familiar. Quando Kenny retornou com uma garrafa de uísque velho, com o rótulo descascado, Kyle se sentiu em casa. Era uma sensação estranha, estar em um lugar tão distante de sua casa verdadeira, em meio à natureza que não o deixava exatamente confortável, mas Stan e Kenny estavam ali, havia uma fogueira, violão e álcool. Então, o lugar não importava realmente. Esse era o seu momento de conforto, sempre.

Já se sentia ébrio apenas por inalar o cheiro forte e doce quando Kenny destampou a garrafa. O loiro deu um gole demorado, o gogó se movendo conforme engolia com a cabeça deitada para trás. A luz do fogo o cobria, deixando-o por inteiro alaranjado, seus cabelos pareciam feitos de ouro reluzente. Havia um resíduo do líquido em seus lábios quando Kenny afastou a boca da garrafa, as gotas brilhando com o reflexo das chamas. Ele não secou a boca, apenas passou a língua de forma lasciva antes de esticar o braço para entregar a garrafa a Kyle, que levou três segundos de distração antes de aceitá-la.

-E você, Ken? - Stan perguntou. - Aquela menina do correio é uma gracinha, vocês continuam saindo? - Fez uma pausa, mas não longa o suficiente para que Kenny respondesse. - Como é o nome dela mesmo?

-Bebe. É, a gente sai. Ela é… - Encolheu os ombros. - Ela é ótima.

-O suficiente pra te transformar num homem direito? - Stan perguntou.

-Pff. Quer dizer, não tem nada de errado com ela, mas não vai muito longe, não. Ela nem pensa em casamento, quer ser grande em Hollywood ou alguma porra do gênero. E eu, bem. Cê sabe. Casar é pros meninos bons que nem você.

A frase soou menos como deboche, mais como carinho. Mesmo assim, Stan franziu as sobrancelhas antes de deixar que o sorriso brotasse em seu rosto, balançando a cabeça.

-Nunca se sabe, cara.

-É, mas não com ela. A Bebe é uma dessas meninas charmosas que não tem muita coisa na cabeça.

-Parece que vocês combinam.

Kenny soltou uma gargalhada. Sempre apreciava quando Stanley era sarcástico.

Kyle, no entanto, entornou um gole vigoroso, o gosto terrível de uísque vagabundo preenchendo a sua boca, ardendo sua garganta enquanto descia. Reminiscente a um líquido que se usaria para desentupir vasos sanitários. Talvez o gosto realmente amargo estivesse na boca de Kyle, mais do que no líquido.

-Ei, ninguém disse que ela não é divertida. - Kenny respondeu, erguendo as mãos em defensiva. Em seguida, puxou a gaita do bolso e fez menção de voltar a tocá-la, mas não chegou a levá-la à boca. - Eu também sou. A gente se diverte junto.

-E você, Kyle? - Stan perguntou de repente, com sua sensibilidade afiada que fez Kyle se sentir exposto, embora não houvesse nada particularmente incomum no modo de falar do rapaz.

-Eu o quê?

Kenny voltou a soprar a gaita.

-Está se guardando pro casamento? - Stan perguntou com um rubor nas bochechas e um brilho no olhar característico do álcool. Toda vez que bebiam juntos, Kyle tinha a impressão de que uma tonelada era erguida dos ombros de Stanley.

-O que isso quer dizer?

-Sei lá. Você é tão discreto que eu nunca sei dizer se isso é timidez ou…

-Mas os quietos são os piores. - Kenny disse, os lábios úmidos de saliva por tocar o instrumento. - Aposto que o Kyle é pior do que eu. As meninas devem fazer fila pra alisar os músculos que ele esconde embaixo dessas camisas de seda com cheiro de amaciante.

Kyle revirou os olhos, balançando negativamente a cabeça. Sentiu dor no peito, embora ninguém tenha percebido, pois ele passou anos a fio aprendendo a mascarar as coisas que sentia, utilizando-se da proteção de um ego inflado e um complexo de superioridade que pouco se sustentavam ao fim do dia, porque todo elogio parecia ser uma zombaria aos seus ouvidos.

Pois não importava a camada exterior que os outros enxergavam. Ele era arrumado e elegante, sim, pelo menos na maior parte do tempo. Bem articulado para se expressar, com gestos de um rapaz bem estudado, que sabia do que estava falando (mesmo que nem sempre fosse o caso). Kyle reconhecia seus atributos. Mas a ideia de que garotas, de todos os seres do mundo, o achariam atraente era, no mínimo, absurda. Porque no fundo, Kyle ainda se sentia o garoto sardento, de cabelo armado e vermelho demais para existir, um nariz protuberante e ossudo que herdou de sua mãe, de sua avó, de seu bisavô, e por aí vai. Olhos muito juntos, um corpo magro e desajeitado que espichou aos quinze anos, e todos diziam que ele cresceria para se tornar um homem alto e belo, mas não foi o que aconteceu. Kyle assistiu, durante toda a sua adolescência, enquanto os outros garotos gradualmente lhe passavam em altura, em charme e em beleza, mas nunca em inteligência, e era a isso que ele se agarrava. Era o que lhe dava orgulho, o que mantinha as pessoas por perto, por mais desagradável que ele fosse às vezes, muitas vezes, Kyle tinha consciência disso. E não sabia como evitar.

A única época de sua vida em que passou a se sentir um pouco mais adequado, talvez até bonito, foi quando se apaixonou por Gregory e compartilhou com ele momentos de amor desenfreado que faziam Kyle se sentir desejável, quente, feliz. Mas isso era culpa do sexo, pois sexo faz isso com as pessoas, enlouquece os hormônios e lança uma nébula sobre os pensamentos lógicos. E agora nada disso importava, pois havia acabado. Kyle não podia mais contar com Gregory para se sentir bem. Ele estava a 1.600 quilômetros, provavelmente na cama de alguma madame fogosa da qual ele se cansaria logo, e a solidão o perturbaria, Kyle o conhecia bem o suficiente para saber disso. De qualquer forma, essa ideia não trazia nenhum conforto.

 

Foram dormir lá pelas duas e meia da manhã, na alta da madrugada fresca e deliciosa, como são as noites de verão. Kenny estava bêbado demais para tirar as botas quando entrou na barraca, engatinhando feito um cachorro, resmungando baixo sobre os mosquitos enquanto coçava a lateral do pescoço. Stan não sentia os mosquitos, bem protegido pela jaqueta jeans que não era sua, era de Kenny, mas os dois trocavam peças de roupa há tantos anos que mal se lembravam de pedir permissão para emprestar alguma coisa. Kyle estava embriagado o suficiente para tirar a calça incômoda, o cinto e os sapatos, mas continuou de meia por puro esquecimento.

Stan dormiu no meio, o que pareceu deixar a todos mais confortáveis, mesmo que nenhuma palavra tenha sido dita a esse respeito. Na época, Stan não percebeu isso.

Um calor confortável se formou dentro daquela barraca de nylon alaranjado pela luz externa de um poste distante. Havia um ronco sutil, não do tipo que incomoda, mas o que não passa de uma respiração mais pesada de quem dorme um sono tranquilo. Kyle não se deu conta quando começou a sorrir, pois já estava imerso demais no plano do sono, envolto por uma neblina que lhe garantia paz e segurança naquele lugar isolado, com aqueles dois homens que costumavam ser sua maior (ou única) fonte de alegria. Apenas os três e a lua que os protegia.

 

Kyle dormiu um sono pesado durante três horas e meia.

Não soube dizer o que exatamente o acordou. O único barulho perceptível era um cantar de pássaros melódico e distante, entoado por um outro som baixinho e familiar. Espreguiçou-se no estreito espaço entre o corpo de Stan e a parede da barraca, bocejando como um leão, tentado a mudar de posição e adormecer novamente. Mas não aconteceu. Seu cérebro começou a prestar atenção no frio que sentia nas pernas, no som que vinha lá de fora, e então os olhos se abriram para descobrir o zíper da entrada da barraca parcialmente aberto. Kyle se sentou, esfregando os olhos. Stan estava muito próximo dele, embarcado em um sono profundo, encolhido em posição fetal. Parecia uma criança quando dormia. O outro lado da barraca, no entanto, estava vazio, apenas o lençol azul embolado no espaço onde Kenny havia adormecido mais cedo.

Enquanto o corpo lento ainda implorava para que deitasse a cabeça novamente, a curiosidade de Kyle não permitiu. No escuro das seis e tanto da manhã, tateou silenciosamente para encontrar a calça e vesti-la sob o lençol, cauteloso para não acordar Stan. Rastejou para fora da barraca.

O sol ainda não havia se levantado, mas já começava a dar o ar de sua graça. Olhando para cima, via-se uma tonalidade azul e roxa se misturando nas nuvens, enquanto o horizonte dava lugar a uma cor laranja e rosa. Kyle sentiu o ar gelado da manhã, abraçando o próprio tronco quente pelo saco de dormir. Após o vislumbre do céu, Kyle percebeu de onde vinha o som familiar: no espaço onde dividiram a madrugada anterior, sentado no mesmo tronco de madeira onde Kyle havia estado horas antes, Kenny tocava o violão. Não usava camisa e tinha um chapéu na cabeça, os cabelos loiros bagunçados, duas garrafas de vidro jogadas pelo chão, uma delas ainda com um restinho de líquido dourado. A fogueira havia morrido, reduzida a um punhado de carvão.

Kyle separou os lábios para dizer algo, mas selou-os quase que de imediato quando percebeu que Kenny estava cantando.

 

Well, the leaves have come to turning
And the goose has gone to fly
And bridges are for burning
So don't you let that yearning
Pass you by
Walking man, walking man walks
Well, any other man stops and talks
But the walking man walks

 

O loiro não o percebeu ali, sentado de costas para a barraca. Mesmo que estivesse de frente, parecia imerso demais na solidão matinal e na carícia do seu violão. Mechas oleosas de cabelo caíam sobre sua testa, visto que tinha a cabeça levemente inclinada para frente e os olhos semicerrados, a voz rouca de sono e de embriaguez que provavelmente ainda não havia passado. Kyle sentiu que invadia um momento íntimo, mas não conseguiu se mover. Pisava na grama úmida de orvalho com suas meias, distraído demais para se incomodar com a sensação.

 

Well the frost is on the pumpkin
And the hay is in the barn
An Pappy's come to rambling on
Stumbling around drunk
Down on the farm

And the walking man walks
Doesn't know nothing at all
Any other man stops and talks
But the walking man walks on by
Walk on by

 

Kyle jamais conseguiria explicar o que havia de tão erótico naquele momento para justificar a sensação quente entre suas pernas, o incômodo de uma meia ereção pressionada dentro da calça, o bastante para ele não ter medo de se aproximar. Mesmo assim, andava silencioso como um felino observando um cervo, ou um cervo observando o seu predador com fascinação desconhecida. Não era apenas uma ereção, mas uma ardência que subia de seu ventre e tomava conta do abdômen, não ardência de cólera, mas de frisson, uma ansiedade que Kyle não poderia colocar em palavras. E ao mesmo tempo, havia uma sensação gelada na boca de seu estômago e peito, bem no centro, não no coração, mas no seu esterno, no centro de seu ser.

Kenny cantava diferente quando pensava que não havia ninguém olhando, quando cantava para si mesmo ou para os pássaros matinais, ou talvez para o fogo que havia morrido. Cantava sem cautela, sem vergonha, sem inibição, mas baixinho e rouco e firme. Virava a cabeça de lado por vezes, balançando-a no ritmo da música, imerso em tal êxtase que não seria capaz de perceber Kyle mesmo que o outro estivesse parado à sua frente.

 

Most everybody's got seed to sow
It ain't always easy for a weed to grow, oh no
So he don't hoe the row for no one
Oh for sure he's always missing
And something is never quite right
Ah, but who would want to listen to you
Kissing his existence good night
 

Apesar do frio da manhã, inexplicavelmente, o corpo de Kenny parecia quente e indiferente à temperatura, tão confortável que poderia ter nascido naquele tronco de árvore junto com seu violão, encaixado no tronco nu e na coxa de tal forma que era difícil imaginá-los separados.

Por alguns instantes, Kyle só tinha olhos para as pintinhas escuras e esporádicas distribuídas pelas costas magras de Kenny, os ossinhos da coluna que apareciam tão evidentes por baixo da sua pele, mas havia tanta virilidade naqueles braços cobertos por pelos tão claros que nem apareciam. Kyle teve um momento de nostalgia lembrando de sua adolescência, de olhar os peões trabalhando sem camisa, carregando objetos pesados e domando animais temperamentais, sonhando em ser um potro ou um saco de feno para ser tocado daquela forma, erguido, apertado, lançado, qualquer coisa que envolvesse mãos rudes em seu corpo. Era uma fantasia de menino, tola e fútil, da qual Kyle ria com vergonha quando se lembrava, mas o que realmente havia mudado? O que havia mudado, se ele continuava ali de pé desejando ser um violão?

 

-Cara, desculpa. Eu te acordei? - Ele ouviu a voz veludosa, em volume baixo, assaltando seus ouvidos. Piscou algumas vezes antes que seus olhos encontrassem os de Kenny, malditamente azuis e sonolentos, encarando-o de volta.

-O quê? Não… Não, eu despertei sozinho.

-É foda dormir bêbado, né? Eu não consegui. Dormi uma hora, acho.

Por um momento, as palavras faltaram. Kyle apenas assentiu com a cabeça, cruzando os braços sem jeito, sentindo a flanela da camisa roçando macia em sua pele, os primeiros botões abertos permitindo que o vento leve lhe acariciasse o peito.

Kenny sentou de lado no tronco, franzindo as sobrancelhas pela expressão no rosto do outro. Parecia tão séria, séria demais para aquela hora da manhã. Coçou a cabeça sem jeito, abrindo a boca para formular uma pergunta que fizesse sentido, mas Kyle pareceu querer dizer algo importante.

-Você tá bem? - O loiro perguntou.

-Tô só pensando. - Kyle murmurou, mantendo os braços cruzados como uma armadura em frente ao peito, aproximando-se dele.

-Em quê?

-”Walking man”.

-O que tem?

-Teria que ser “Walking men”. Porque são três.

Kenny soltou uma gargalhada nervosa.

-Eu acho que você ainda tá bêbado, Kyle.

-O nome da banda, Kenny. - Ele falava agora como um homem desperto de um encantamento divino, que podia enxergar tudo com clareza, seus olhos verdes reluzindo enquanto o sol pintava o céu inteiro de rosa. - Você… Eu acho que você encontrou o nosso nome.

Um sorriso doce, quase envergonhado, brotou nos lábios rachados de Kenny. Ele encolheu apenas um ombro, rindo novamente, dessa vez mais aberto, contente. Satisfeito. E foi apenas isso que houve, um segundo que se esticou por uma eternidade, enquanto Kenny McCormick e Kyle Broflovski se olhavam sob o sol nascente.

-O que seria da gente sem você, Broflovski?



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