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História Walking Men - Only one


Escrita por: caulaty

Notas do Autor


"Only one" - James Taylor

"Dream lover" do Bobby Darin e "I fall to pieces" da Patsy Cline também aparecem no capítulo e ficam de sugestões pra acompanhar a leitura. Espero que curtam!

Capítulo 7 - Only one


Outono de 1959 – Nashville, Tennessee

 

-Stan, se acalma. - Kenny disse, tentando conter o sorriso nos lábios.

A sala era pequena, com uma única janela coberta por cortinas brancas transparentes, as paredes de madeira, um pequeno divã no qual Kyle estava sentado, um espelho oval pendurado sobre a penteadeira e um armário de carvalho antigo compunham o quarto. Os três usavam ternos. O de Stan, preto. O de Kenny, cinza claro (velho e remendado, emprestado por Craig Tucker). O de Kyle, cinza escuro, comprado justamente para aquela ocasião. Por sua mãe, é claro, que estava irradiante de alegria desde recebera o convite oficial para o casamento pelo correio. Sheila adorava casamentos.

-Essa merda pinica! - Stan gritou, coçando as pernas com a graciosidade de um rapazinho de dez anos. A gravata azul bebê estava pendurada entorno do pescoço, desfeita, amassada por uma sequência de falhas tentativas de atar o nó. - E se eu me coçar na frente de todo mundo?! E se eu ficar dançando no lugar e pensarem que eu preciso mijar? - Sua expressão ficou ainda mais aterrorizada de repente. Ele mexia na gravata de modo desajeitado, o suor se formando na testa. - Meu Deus, e se eu precisar mijar de verdade?!

-Então mija agora! - Kenny disse, alimentado pela ansiedade do amigo, apontando para a porta do banheiro.

-Eu não quero mijar!

-Então pera. - Kenny correu até a cômoda sobre a qual estava a jarra de vidro cheia de água. Serviu um copo e entregou a Stanley. Nesse meio tempo, Kyle havia se levantado e afastado as mãos suadas de Stan daquela gravata malfeita, ajeitando-a por baixo da gola antes de começar a dar o nó.

Stan entornou o copo inteiro em um único gole e encarou os olhos calmos de Kyle, segurando um excesso de água na boca que enchia suas bochechas por um instante, antes de engolir de forma barulhenta. Sem que o ruivo precisasse dizer nada, Stan começou a respirar com ele. Uma, duas, três vezes. Inspira. Expira. Kenny tomou o copo da mão de Stan nesse meio tempo, observando com curiosidade.

E por fim, Kyle sorriu, finalizando o nó da gravata.

-É o dia do seu casamento. - Disse, deslizando as mãos para os ombros dele, massageando-os de leve. - Nada vai dar errado.

-E se eu tropeçar?

-Tudo o que acontecer hoje vai ser parte da história linda e hilária que você vai contar aos seus filhos. Mesmo que algo dê errado, vai ser certo.

Por um instante, o coração de Stan passou a bater mais tranquilo, e foi como se, por um segundo, ele enxergasse o rosto de Kyle pela primeira vez. Sorriu, como era inevitável de acontecer. O encanto momentâneo foi quebrado pelo braço de Kenny em torno de seus ombros, puxando-o para a confortável realidade do agora; tudo estava bem. Ele se casaria em uma hora, na igrejinha do outro lado da rua, e tudo estava bem.

-Isso mesmo, Stanny-boy. - Kenny disse, expondo os dentes em um sorriso gigantesco. - E se você cair, a gente te levanta.

 

A igreja era pequena e branca, feita de madeira, o mesmo lugar onde Stan e Annie haviam sido batizados, muito antes de se encontrarem nesse mundo. Stan, de pé diante do altar, encarando a enorme cruz de madeira e tentando não pensar na coceira na lateral do seu tronco, perguntava-se como seria sua vida ao lado daquela menina que, em algum momento que ele não percebeu, havia se tornado uma mulher. Stan ainda não estava certo de que se tornara um homem, e o pensamento lhe causou medo.

Virou o rosto para Kenny, que estava ao seu lado na honrada condição de padrinho. A luz do sol penetrava os vitrais nos fundos da igreja e iluminavam o loiro dos cabelos de Kenny. Ele deu uma piscadinha que Stan retribuiu com um sorriso ansioso.

O silêncio de uma igreja era algo desconfortável. Ouvia-se tudo. O pigarreio impaciente do tio-avô cansado, o fungar do nariz da tia gorda na terceira fila, o resmungo de um bebê que não foi ainda ensinado a se portar diante do silêncio constrangedor da espera.

As portas duras se abriram com um estrondo, a música veio. E Stan sentiu vontade de chorar.

Annie não era a mulher mais bela do mundo, mais céus, entre os dentes tortos e o nariz arrebitado, ela tinha uma luz própria que cegava. Estava indescritivelmente feliz em seu bufante vestido branco, rendado no colo e as rendas subiam até o pescoço, com dezenas de botõezinhos perolados nas costas. Seus cabelos loiros feitos em um penteado ondulado, com um delicado véu que descia até o meio de suas costas, com flores azul-bebê na tiara que o sustentava. O vestido descia até a altura dos tornozelos, revelando a meia fina branca que havia por baixo. Ela atravessava a igreja enfeitada por arranjos de flores brancas e azuis.

Seu pai morrera quando Annie tinha nove anos, um tiro no peito por conta de uma dívida não paga, mas lá estava ela de braços dados com seu avô, Anthony Kittens, um dos homens mais gentis que Stan já conhecera. É certo que Stan não conheceu muitos homens gentis em sua vida.

Sheila Broflovski chorava na terceira fila, maravilhada, vestida em cetim verde escuro, borrando a maquiagem. Kyle desejava não ter se sentado ao lado dela. Em partes, acreditava que o choro de sua mãe pouco tinha a ver com a beleza da noiva ou a alegria daquela cerimônia, mas sim com uma compreensão de que jamais veria seu filho mais velho se casar. E invejava Sharon, que estava tão bonita em um simples vestido azul escuro, um sorriso calmo no rosto. Stan se parecia tanto com ela. A alegria deles não era explosiva, mas sim de uma qualidade muito mais sigilosa, difícil de transparecer.

Ao fim da caminhada, o Sr. Kittens e Stanley compartilharam um longo abraço. Havia um comunicado não-verbal naquele abraço, talvez de mútua confiança, do tipo que Stan só tinha com seu próprio pai quando Randy estava embriagado.

Em seguida, Stan tomou as mãos de Annie de tal forma que entristeceu o coração de Kyle por motivos que ele não podia entender direito. Casamentos em geral tinham esse poder sobre ele, poder de causar um pingo de tristeza desconhecida, e não se tratava de uma vontade indigesta de fazer parte daquela cerimônia, da cristã e da judaica, nada daquilo fazia sentido para ele. Durante muito tempo, Kyle pensou que aquele incômodo estivesse relacionado à própria depressão do cristianismo e a renegação de sua própria fé judaica, de toda fé existente. Mas não era isso. Ou, pelo menos, não só. Pela forma com que Stan olhava sua noiva, a completude nos olhos de quem tem uma vida inteira para frente e deseja fazer a caminhada de forma conjunta, Kyle entendeu que as cerimônias de casamento apenas faziam com que se sentisse terrivelmente sozinho.

Quando o padre começou a falar, Kyle virou o rosto na direção de Kenny, notando que era observado por ele. Sua expressão era séria como poucas vezes Kyle vira antes. O coração acelerou de repente. Mas logo, Kenny sorriu. E Kyle voltou a ouvir a música, as palavras do padre, o mundo que voltava a girar.

 

O salão era amplo, de teto alto, com pequenas luzes penduradas por toda parte para criar uma ambientação confortável, grandes mesas redondas de toalhas brancas e cadeiras rústicas de madeira, arranjos imensos no centro em vasos de vidro, com delicadas flores brancas, lilacs, hortências, gardênias e girassóis. O piso amplo era em xadrez preto e branco. Não era uma decoração particularmente elegante, como não faria sentido para o casal em questão, mas o bolo de glacê e morangos tinha três andares e a fartura do banquete compensava por qualquer coisa. No que dependesse de Stan, eles teriam se casado no quintal de casa.

Antes do jantar, no entanto, os três – Stan, Kyle, Kenny – subiram ao pequeno palco. Clyde e Craig também, ao fundo. Craig Tucker tocava percussão, um gosto apurado por bateria, enquanto Clyde era bom com baixo e instrumentos de sopro em geral. O convite para tocar no casamento de Stan foi a porta inicial para o que, mais tarde, seria o convite à banda. Mas ninguém discutiu isso aquela noite.

Kenny tinha o violão preso em volta do tronco. Stan se posicionava no meio, um sorriso nervoso estampado na face. Era raro que Stan estivesse no centro, na configuração natural dos três, mas era diferente naquela noite. Porque não se tratava da performance, da vaidade do palco; tratava-se de Annie. E era sobre ela. Para ela. Com o coração aberto, ele aproximou os lábios do microfone,

 

I've got two long legs like to carry me
Two sharp eyes to look for the light
I got two strong arms to hold on tight
Two good friends on my left and right
But only one only one

 

Olhou para Kenny e Kyle com um sorriso sincero em meio aos versos, mas logo, sua atenção se voltou à sua noiva que estava de pé em frente ao palco com as mãos sobre o busto, o sorriso tão grande que mal cabia em sua face, um tipo tímido de risada querendo acontecer. E Stan entendia. Espelhava-se tanto em Annie, tinha o peito carregado de certeza de que era ela a sua companheira para toda a vida. Stan tinha dificuldade de encarar aqueles rostos conhecidos de cima de um palco, mas nada parecia fora de lugar com a presença de Annie.

Logo, Kenny e Kyle deram um passo à frente, cada um em seu respectivo microfone, para se juntar a ele.

 

And you are my only one
You are my only one
Don't be leaving me now
Now you're my only one

 

Havia algo de especial a respeito da mistura daquelas três vozes. E era perceptível. Algumas mesas atrás, Eric Cartman estava de pé com os braços cruzados, segurando um copo de uísque com gelo muito próximo da boca, estudando a cena. Seus olhos escaneavam aquela interação, a química, a organicidade simples e deleitosa daqueles três garotos que pareciam tão felizes, tão inacreditavelmente contentes, como se fosse impossível apontar qual deles era o noivo. Porque a alegria de um parecia ser a alegria dos outros dois de forma tão sincera que era difícil compreender. Havia amor ali, Cartman percebeu. Logo, um garçom passou com a garrafa para encher seu copo.

 

Now there's only one road before me
Too many turns in the way
Thousands of things to do today
Millions of moments I must admit
But only one, only one

And you are my only one
You are my only one
Well, I'm telling you now
Now you're my only one

 

Os casais dançavam. Randy Marsh abraçava sua esposa por trás e sussurrava algo em seu ouvido enquanto um balanço se formava entre eles, num ritmo calmo e conjunto. Annie ainda segurava seu buquê, dançava com ele, mandava beijos para o homem que – mal podia acreditar – podia chamar de marido. E chorava. Chorava, pois tudo o que Annie sentia transbordava de dentro dela, tudo transparecia.

Stan pôs a mão sobre o peito cheio de ar, os olhos se fechando de forma natural e a cabeça pendendo para o lado apenas por um instante. Os dedos de Kenny tocavam as cordas do violão com aquela intimidade antiga, os pés batendo no chão no ritmo da bateria de Craig Tucker, suave, gostosa, como eram poucas coisas na vida. Kenny virou o rosto para a esquerda, encontrando o perfil de Stan cobrindo Kyle. Estava próximo o bastante para perceber o quanto o amigo suava dentro daquele terno, e quis rir, pois a parte difícil havia passado.

 

Taken for granted and pushed aside
All that it wanted was a place to run and hide
Missing message in a hollow tree
Hidden deep inside a memory

And the memory seems like dreams
Hundreds of hopes in the past
Nevertheless it was never the last
Hold on strong or you fade out fast
And only one only one
 

Inclinando-se um pouco para frente, no momento em que Stan cantava sozinho, Kenny conseguiu ver o rosto de Kyle. E havia algo de melancólico por trás dos olhos dele, algo tão enterrado embaixo daquela expressão radiante que Kenny se perguntou se estava imaginando coisas. Por um instante, os olhos se encontraram. Quase sem perceber, com o rosto deitado de lado e a boca quase tocando o microfone, Kenny cantou os próximos versos olhando para ele. Kyle ofereceu um outro tipo de sorriso, pequeno e curioso, o suficiente para aquele olhar melancólico desaparecer.

 

Oh, you are my only one
You are my only one
Don't be leaving me now
Believe in me now
Believe in me now
Well, I'm telling you know
You're my only one

 

 

Kyle voltou cambaleando do banheiro, respirando fundo para encher o peito de coragem. Pois estava na hora. Passara da hora. E havia uma cavalar quantidade de álcool em seu sistema, então ele estava pronto. Botou um pé em frente ao outro, marchando em direção à redonda mesa à qual sua mãe estava sentada. Quanto mais Kyle olhava aqueles arranjos de mesa, mais brega eles pareciam. Bonitinhos. Mas bregas. Ele fazia o possível para se lembrar de não comentar em voz alta a sua opinião sobre a ridícula coroa de flores da noiva. E quanto mais bêbado ficava, mais horrenda aquela coisa parecia se tornar.

O que ele estava fazendo mesmo?

Ah, sim.

Sheila estava sentada sozinha à mesa de oito lugares que a família Broflovski dividira com os parentes de Annie que também eram do Texas. Kyle achou um pouco ofensivo que eles fossem colocados na mesma mesa simplesmente por serem do mesmo lugar, mas seus pais se deram tão bem com aquele casal barulhento que, no fim das contas, Kyle não teve do que reclamar. Durante o jantar, ele havia se mudado para a mesa de Kenny, Clyde e Craig, deixando os mais velhos debatendo política mundana.

Craig e Clyde eram figuras interessantes, que se equilibravam muito bem. Craig quase não falava. Clyde nunca calava a boca. Craig tinha um tipo de beleza esquisita; tinha traços fortes, elegantes, um nariz comprido e olhos agressivos, o tipo de aparência que torna um homem tão atraente quanto imbecil, do tipo que você não tem certeza se quer beijar ou socar. Após quatro copos de cerveja, Kyle começou a achá-lo bonito demais para o seu gosto, mas continuava não gostando muito dele. Clyde, no entanto, ainda se parecia com um ursinho de pelúcia.

Enquanto pensava sobre os dois rapazes que seriam seus músicos e companheiros, Kyle nem se deu conta de que o trajeto havia acabado. Foi arrancado de um transe quando sua mãe empurrou a cadeira para trás e estendeu a mão a ele, com uma pulseira dourada aberta, caída em seu gordo pulso.

-Kyle, benzinho, me ajude a fechar isso aqui!

-Mãe. - Ele disse, preparando-se para dizer tudo o que precisava ser dito, mas aquela pulseira ficou no caminho e o fez tropeçar em seus próprios pensamentos. Ajoelhou-se para aproximar o rosto do fecho da pulseira. Suas faculdades motoras não estavam muito bem, era preciso admitir, e droga, por que era tão escuro naquele salão?! - Merda.

-Não diga essas coisas.

Kyle estava embriagado demais para protestar ou pedir desculpas, toda a energia do seu cérebro voltada para fazer sentido das coisas importantes, as mãos empenhadas em desvendar o mistério do encaixe daquela pulseira desgraçada. Onde é que estava o buraco, cacete? Kyle começava a suar de estresse. Ele não precisava de mais esse problema em sua vida.

-Eu não sei o que aconteceu, eu estava bebendo champanhe e minha pulseira soltou! Sozinha Imagine se eu não tivesse percebido!

-Mãe.

-É ouro de verdade, sabia? Teria sido terrível perdê-la. Foi sua avó quem me deu!

-Mãe, eu não vou voltar pra universidade.

Havia um olhar muito específico no rosto de Sheila Broflovski quando ela ouvia algo que gostaria de não ter ouvido. Piscava algumas vezes, com seus olhos escurecidos, mas não confusos, apesar de ela tentar fazer parecer que sim. E Kyle estremeceu de pavor por um segundo, sentindo-se, novamente, como um menino de dez anos.

Durante a maior parte de sua vida, o pior medo de Kyle foi a desaprovação de Sheila Broflovski. Ficou assustado com as palavras deixando seus lábios sem aviso, mas o alívio que veio em seguida compensou por toda a amargura em sua boca.

Ela arrancou o braço do alcance dele, o que o teria magoado se Kyle estivesse sóbrio. Mas não estava. Sheila bateu a pulseira sobre a mesa.

-Do que você está falando?

Ele começou a gaguejar. Esperou que ela o interrompesse, como era comum, mas Sheila esperava por uma resposta de verdade. Talvez ele devesse ter pensado melhor sobre isso.

Sentou-se na cadeira ao lado de sua mãe.

-Kenny e Stan e eu, nós cantamos juntos. - Ele explicou, como se ela não os tivesse visto no palco poucas horas antes.

-Eu sei disso. E é muito bonitinho.

-E nós queremos cantar juntos como… Como trabalho. Entende?

-Eu não… Eu não estou entendendo.

A música alta não facilitava aquela conversa. Só então, Kyle percebeu que sua mãe também estava bêbada. Que eles gritavam na cara um do outro sob aquela música estrondosa. O que era aquilo, afinal, Elvis Presley?

-Eu quero cantar, mãe! Eu não quero passar o meu dia inteiro sentado numa cadeira em uma sala fechada ouvindo um velho falar durante quatro anos pra conseguir um pedaço de papel que vai validar a minha vida! Eu já sei o que me faz feliz!

-Um pedaço de papel?! É a sua educação! É a sua vida profissional, você disse que queria História! Foi um inferno convencer seu pai a pagar!

-Eu estava errado! Tá bom? Mãe. - Ele esfregou o próprio rosto antes de repousar as mãos sobre as dela. - Eu amo ler. Eu amo estudar. Eu amo História. Mas eu não vou… - Foi interrompido por um soluço agressivo. - Eu não quero ler sobre grandes artistas e não fazer nada por mim mesmo. Não faz sentido pra mim.

-E eu devo cruzar os braços enquanto você joga o seu futuro pela janela e despreza tudo o que seu pai e eu fizemos por você?! Você sabe quanto dinheiro nós já investimos nesse seu “erro”?! Ahn?! Você pensa nessas coisas? E se você estiver errado sobre isso também? Quem é que vai pagar por isso? Se você decide fugir com o circo amanhã, porque te “faz feliz”, eu devo aplaudir e achar bonito?

Logo nas primeiras palavras de Sheila, Kyle havia soltado as mãos dela. Não olhava sua mãe nos olhos enquanto ela falava. “Dream Lover” começou a tocar ao fundo desse amargo discurso.

-Eu não sei porque pensei que você fosse entender. - Ele murmurou, mais para si mesmo do que para ela, acometido pela mais terrível dor de cabeça. Por um momento, Kyle se perguntou se eles realmente estavam discutindo sobre sua educação, ou se aquilo era mais uma forma oculta de Sheila lembrá-lo de que ele era uma perversão, uma decepção, uma coisa que deu errado. Ele se levantou.

O contente som de Bobby Darin preenchia todo o espaço, as pessoas dançando animadamente por todo o salão, e tudo aquilo parecia uma piada de mau gosto.

-Você pode não entender isso, Kyle, mas é minha responsabilidade garantir que você se torne o melhor homem que você pode ser. Você é muito jovem para ter noção do que uma escolha dessas pode fazer com a sua vida.

-Mãe, eu não vim pedir sua permissão. Eu sei que isso dói na senhora. Mas é o que é.

Havia um “e você não pode me obrigar” não dito naquela frase, e Kyle não o disse em voz alta por não saber se isso era verdade realmente.

A conversa acabou ali.

 

Em determinado ponto da noite, suado de tanto dançar com a amiga ruiva de Annie (aquela cujo nome ele nunca conseguia se lembrar), Kenny foi acometido por uma terrível vontade de fumar. Apalpou os bolsos para se dar conta de que o maço havia ficado em sua mochila, e que sua mochila havia ficado no quarto onde Stan se arrumara. Era um dos privilégios de ser padrinho.

Kenny deixou o salão de festas e subiu a escadaria para os aposentos no andar de cima. Era um corredor escuro, com papel de parede listrado e quadros genéricos com molduras douradas. Ainda podia ouvir “I fall to pieces” tocando ao longe, a melodia abafada pela distância, e um outro som se misturava à música. Um som fininho que ficou mais forte quando Kenny parou em frente a porta. Abriu.

Kyle limpava o rosto, de cabeça baixa, segurando um cigarro aceso entre os dedos da mão esquerda, sentado sobre o divã. Secava as lágrimas com pressa, e Kenny esbarrou no batente da porta, bêbado demais para recuar com graciosidade. A janela estava aberta, as cortinas se levantando com o sopro do vento. Kyle se levantou, ao mesmo tempo em que Kenny adentrava o quarto e fechava a porta. A música do salão era, agora, nada mais do que um ruído.

-O que foi, Kyle? - Perguntou com a voz mansa que usava para falar com seus porcos e galinhas, sentindo dor no peito pela maneira com que o outro virava de costas, escondendo o rosto, secando as bochechas com a manga do terno. Deus, como ele parecia frágil.

-Ei… - Aproximou-se dele com cuidado, estendendo a mão com o intuito de tocar seu ombro.

-Eu tô bem. - Kyle recuou, parecendo um bicho acuado contra a penteadeira.

-Por que você tá…?

-Não é nada, me deixa em paz! - Ele gritou, dando a volta para se aproximar da janela, tragando o cigarro como se fosse sua única forma de respirar, seu único alívio. Assim, de relance, Kenny pode dar uma olhada nas suas bochechas rosadas e os olhos vermelhos de choro.

O loiro franziu o cenho. Após alguns segundos olhando ao redor, puxou a cadeira da penteadeira e sentou-se ao contrário, apoiando os braços no encosto. Observou enquanto Kyle massageava as têmporas para aliviar a dor de cabeça, espirando-o de canto.

-O que você tá fazendo?

-Te deixando em paz. - Kenny respondeu com simplicidade, mas a expressão de Kyle parecia insatisfeita. - Você tá triste. Não precisa me contar porquê, mas não me pede pra te deixar sozinho.

Por um instante, Kyle pareceu querer rir. Mas em vez disso, apagou o cigarro na janela e cobriu o rosto com as duas mãos, estremecendo. Havia um movimento em seu peito, uma ansiedade característica do choro embriagado, sem emitir som. Voltou para o divã com as pernas fracas, abaixando a cabeça.

Kenny se levantou da cadeira para correr até o banheiro, voltando logo com o rolo inteiro de papel higiênico. Em qualquer outra circunstância, Kyle teria sorrido. Mas seus olhos brilharam um pouco mais quando ele tomou o rolo que Kenny ofereceu e arrancou um pedaço para assoar o nariz. Os soluços ainda vinham, o tremor no peito continuava ali, e de vez em quando, Kyle apertava os olhos com força, espremendo um acúmulo de lágrimas que continuava ali. Foram secando após os dois sólidos minutos em silêncio que os dois passaram, Kenny sentado ao seu lado, presente, mas não invasivo. Durante esse tempo, a respiração de Kyle também voltou ao normal.

Foi Kyle quem quebrou o silêncio:

-Eu sinto muito por você ter visto isso.

-Eu não. - Kenny respondeu com honestidade. Sorriu apenas quando Kyle se virou para olhá-lo. - Quer me contar o que aconteceu?

-Não muito.

O loiro assentiu devagar. Permitiu que sua mão tocasse a nuca de Kyle para fazer uma leve massagem.

-Tudo bem.

Kyle passou mais algum tempo assim, catatônico, imóvel, os olhos pesando sobre o chão. Mas o toque da mão quente de Kenny em sua nuca fez com que os ombros relaxassem. Quando ouviu a música mudando ao longe, levantou-se para jogar no cesto de lixo o papel usado.

-Obrigado, Kenny. - Disse, finalmente parecendo despido daquela agressividade defensiva. - Mesmo.

Kenny também se levantou.

-É uma merda te ver assim.

Ele pareceu um pouco surpreso pela honestidade daquela frase, erguendo as sobrancelhas por um momento, desarmado. Aproximou-se de Kenny, arrastando os pés no chão. E apenas olhou para ele, com seus olhos ainda inchados, um sorriso tão sutil se formando nos lábios, quase imperceptível. Porque o álcool o fazia esquecer de como disfarçar, como fingir. Havia algo de tão caloroso naquele menino loiro, tão inadequado naquele paletó, a gravata já desfeita, os olhos mais bondosos desse mundo.

-Acho que eu não tô muito acostumado a…

Antes que Kyle pudesse concluir a frase, Kenny dava um passo à frente que acabava com aquele adequado campo de distância entre eles, a mão – tão calorosa, tão confortável – roçando pela bochecha úmida de Kyle, de modo que todas as palavras morreram em sua boca. Kenny o calou assim, quase sem perceber, e o momento de silêncio foi tudo o que ele precisava para inclinar-se para frente, afim de acabar com os poucos centímetros que separavam seus lábios dos de Kyle.

Eles se tocaram, primeiro de forma tímida, hesitante, mas Kyle sugou o ar pela boca de tal modo a soltar um som pequeno e manso, não tão surpreso quanto desejoso, e aquilo se pareceu tanto com uma permissão que Kenny escorregou a mão até a sua nuca para puxá-lo mais perto, procurando-o com a língua antes mesmo de os lábios se encaixarem. O nariz roçava pela pele do rosto dele, inalando um cheiro do qual Kenny havia sentido apenas de longe, mas ansiava senti-lo por inteiro, cobrir-se daquele cheiro, tornar-se parte dele.

Havia medo naquele beijo, medo que fazia com que nenhum dos dois se mexesse muito, medo de quebrar um momento que parecia frágil feito cristal. Mas as mãos de Kyle encontraram o peito dele, instintivas, intocadas pelo medo, e Kenny passou o outro braço entorno da cintura dele como já fizera tantas outras vezes, de brincadeira, ou de maneira fraternal, pois agarrava-se a cada possível desculpa de tocá-lo. E agora, seu corpo inebriado o sentia de verdade, provava o gosto dele. Kyle tinha gosto de álcool e lágrimas e alguma coisa tão estranha e familiar, o aroma do ar que ele respirava, aquele cheiro que só se sente ao chegar intimamente perto de alguém e cada ser no mundo é diferente. Não era como Kenny havia imaginado, pois os pensamentos de Kenny nunca puderam projetar textura, aroma, sabor dessa forma tão concreta.

E havia um som tão doce que preenchia aquele quarto, o som de lábios e línguas se descobrindo timidamente. Tudo isso endureceu Kenny de forma tão rápida, tão brusca, como ele não experimentava desde a adolescência, desde suas primeiras descobertas.

E tudo isso foi arrancado dele, antes mesmo que o corpo embriagado de Kenny pudesse se dar conta do que acontecia. Kyle usou as mãos em seu peito para empurrá-lo, cambaleando em um passo para trás, a expressão tomada por um genuíno pavor que revirou o estômago de Kenny. Ele ainda podia sentir o calor em seu peito, o gosto da saliva em sua boca, a textura dos lábios dele ecoando em cada célula de seu corpo.

-Kyle. - Disse, mas o outro balançava a cabeça. E o peso da realidade começou a pesar sobre os ombros de Kenny. O peso da inconsequência, da idiotice que acabara de cometer.

-Eu tenho que… - Kyle murmurou, mas nunca concluiu a frase, andando para trás. - Desculpa. - Disse, e Kenny quis dizer que não havia o que desculpar, quis tomá-lo em seus braços e acariciar seus cabelos, mas Kyle já não estava mais no quarto. Deixou a porta aberta ao sair.



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