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História Walking Men - When the ship comes in


Escrita por: caulaty

Notas do Autor


"When the ship comes in" - Peter, Paul and Mary

Esse capítulo foi especialmente escrito e entregue no dia de hoje pra minha linda May, @millab, minha artista preferida desse fandom que fez aniversário hoje. May, eu nem tenho como te agradecer por ser essa luz na minha vida, por acreditar tanto nessa história quando até eu tenho dificuldade de acreditar. Te amo, feliz aniversário, meu Chris (e meu Cartman). <3

Capítulo 8 - When the ship comes in


Inverno de 1959 e 1960 – Nashville, Tennessee

 

Faltava um membro. Um músico, alguém que dominasse instrumentos de corda como ninguém. Banjo, bandolim, guitarra, violoncelo, violão. Alguém que fosse mais carismático do que aqueles dois músicos caipiras que Kenny e Stan haviam arranjado, Cartman frisava. E toda vez que a preocupação surgia, o empresário dava a mesma resposta: “eu já tenho o cara”. Mas essa figura sempre permanecia no campo das ideias. Cartman não dava sequer um nome. Esperou que Stan voltasse da lua de mel para marcar uma data em que finalmente poderia introduzir sua arma secreta, a cereja no topo do bolo. Kyle começou a duvidar que tal pessoa existisse realmente.

Durante algum tempo, as coisas ficaram estranhas. Enquanto Stan fazia sua breve viagem ao México com Annie, Kenny telefonou para Kyle duas vezes. Nas duas, Kyle encontrou uma forma de evitá-lo. Kenny podia ouvir a mentira insatisfeita na voz de Sheila enquanto dizia que seu filho não estava em casa. Kenny não precisou telefonar uma terceira vez para entender o recado.

Na morada dos Broflovski, também levou alguns dias para Sheila e Kyle reconhecerem a presença um do outro. Gerald, como sempre, era um mediador no escuro, tentando equilibrar as forças daquela casa sem saber do que a briga se tratava. Porque Kyle e Sheila, apesar de colidirem suas ideias desde a infância de Kyle, eram extremamente leais um ao outro.

Kyle se sentou à mesa do escritório de seu pai para ter uma daquelas conversas “de homem para homem” que ele tanto desprezava. Mas era preciso. Tudo isso era preciso, toda essa dança familiar de autoafirmação. O escritório de Gerald era o tipo de ambiente que inspirava uma coluna reta, uma rigidez muscular, muita infelicidade. O papel de parede era verde escuro com listras amarelas, uma coisa pavorosa, e todos os móveis eram de madeira escura. Havia uma estatueta de um cavalo feito de bronze sobre a mesa e pinturas da fazenda decorando as paredes. Gerald mantinha, também, uma garrafa de bourbon na gaveta e achava que Kyle não sabia sobre ela.

Foi muito diferente da conversa com sua mãe, isso pode ser dito. Kyle estava sóbrio, muito mais sóbrio do que gostaria. Explicou, de forma articulada e madura, com a frieza com que Gerald negociava suas cabeças de gado, que não voltaria à universidade. Que repensou o rumo de sua vida, suas prioridades, que fazia parte de um trio representado comercialmente por Eric Theodore Cartman (“lembra, aquele menino gordo que estudou comigo?”), que se chamavam The Walking Men e gravariam seu primeiro álbum em breve com o dinheiro da herança que vovó deixara para Kyle, e que não esperava aprovação ou apoio de Gerald, pois era o seu dinheiro e a sua decisão. Por fim, Kyle acrescentou que estaria disposto a trabalhar para Gerald nesse meio tempo de transição, caso isso facilitasse as coisas entre eles.

Ao finalizar a apresentação de seu caso, Kyle repousou as mãos sobre as coxas e esperou.

Gerald tirou os óculos, com os cotovelos apoiados sobre a mesa, e massageou as têmporas com um suspiro profundo.

-Você ainda vai me matar do coração, Kyle. - Disse.

Foi sua maneira de demonstrar aceitação. Kyle não esperava nada além disso.

 

Dez dias antes do natal, Kyle, Kenny, Stan e Cartman se reuniram para buscar o mais novo músico na estação rodoviária. Fazia um frio desgraçado aquele dia; Kyle socava as mãos nos bolsos, encarando o horizonte a espera de uma chegada desconhecida, pois Cartman continuava sendo irritantemente misterioso a respeito de tudo. Não dizia nem de onde vinha o ônibus. O sol brilhava com força, mas o vento parecia cortar a pele. Kyle estremeceu.

-Cartman, o seu amigo imaginário tá atrasado. - Kenny disse, olhando o imenso relógio redondo da estação. Kyle virou o rosto em direção a ele por um instante, mas desviou assim que as íris azuis de Kenny o encontraram.

O que acontecia muito ultimamente, em todos os ensaios. Annie e Stan estavam sempre presentes, o que fazia Kenny se obrigar a fingir que tudo estava bem quando Kyle nem sequer olhava para ele. Não bebiam mais juntos, nem esticavam as madrugadas brincando com o violão até o amanhecer, conversando sobre política e poesia e morte. Stan e Annie estavam envolvidos demais um pelo outro para isso, querendo todo o tempo a sós que conseguissem. Se Stan notou alguma mudança entre os companheiros, não disse nada. O que era de seu feitio. Kyle era escorregadio o bastante para sempre arrumar uma desculpa; ia embora mais cedo, culpava o frio, inventava funções para nunca estar a sós com Kenny.

-Que engraçado você é, McCormick. Tá vindo aí o que falta pra vocês pararem de tocar naquelas espeluncas que fedem a mijo de gato.

Cartman apontou com a cabeça em direção ao ônibus branco e azul com o desenho de um cachorro na lateral, aproximando-se da estação. Stan se levantou do banco onde havia se sentado, guardando no bolso o isqueiro que acendia e apagava várias vezes para passar o tempo. Kyle estava um pouco afastado deles, os braços cruzados, o cenho franzido ao perceber, pelo letreiro, que o ônibus partira de Houston.

As pessoas começaram a descer do ônibus.

Ao ver o rosto familiar, Kyle abriu seu primeiro sorriso honesto em semanas.

Aos olhos de quem não o conhecia (Kenny McCormick, por exemplo), o homem que descia do ônibus poderia ser descrito da seguinte forma: era alto, de pele escura e dentes muito brancos, grandes e retos, deixando óbvio que ele tinha acesso a luxos como tratamento dentário. Vestia-se muito bem com sua camisa engomada rosa bebê e o paletó bege recém-passado, sapatos lustrosos e um anel de ouro na mão direita. Ele trazia, nas costas, a capa de um instrumento (um violão, talvez) e uma mala na mão.

E Kyle correu para abraçá-lo, rindo, colocando-se na ponta dos pés. Foi o tipo de abraço que dura mais do que cinco, dez segundos, o tipo que tem saudade. Tudo sobre aqueles corpos indicava um afeto familiar e antigo.

-Você disse que me escreveria, desgraçado. - Foi a primeira coisa que Kyle disse ao se afastar, mas os braços continuaram enroscados no homem.

-Você também disse. A gente gosta de falar coisas.

-Porra, como é bom te ver. - Kyle disse com um brilho honesto nos olhos e um riso fraco.

-Não pra interromper um reencontro emocionante desses. - Cartman disse, pigarreando enquanto jogava o braço ao redor dos ombros do rapaz, trazendo-o para mais perto, batendo em seu peito em um cumprimento grosseiro. - Esse é o Token. Preparem-se para conhecer um músico de verdade, crianças.

 

 

As gravações tiveram início logo após as festividades de final de ano. No dia 5 de janeiro, assinaram o contrato com a gravadora, apresentaram Token a Clyde e Craig e deram início aos ensaios com os músicos no porão da casa de Craig Tucker. Estavam prontos. Músicas escolhidas, arte da capa em desenvolvimento, Cartman mexia seus pauzinhos no que dizia respeito à divulgação. A coisa começava a ganhar forma.

 

Oh, the time will come up
When the winds will stop
And the breeze will cease to be breathin'
Like the stillness in the wind
Before the hurricane begins
The hour that the ship comes in

And the seas will split
And the ship will hit
And the sands on the shoreline will be shaking
Then the tide will sound
And the wind will pound
And the morning will be breaking

 

Iniciaram as gravações em um dia de chuva, mas o isolamento acústico abafava o som estrondoso da chuva torrencial que caía lá fora nas ruas vazias do centro, as árvores chacoalhando com o vento, jornais encharcados voando sem rumo. No entanto, nada disso importava dentro do estúdio.

Cartman tudo observava de braços cruzados, batendo o pé ansiosamente no chão. Não conseguia se sentar.

Assistia atentamente à cena do outro lado do vidro, à disposição daqueles meninos que não entendiam ainda a dinâmica dos estúdios, das gravações, dos equipamentos, mas céus, como eles se divertiam cantando. Era visível. Escolheram como abertura do álbum aquela música que era um equilíbrio ideal entre as três vozes, e elas quase nunca se separavam naquela canção, um dava continuidade ao que o outro iniciava, pois os três eram parte de uma coisa só. Uma voz não se sobressaía às outras; aquilo daria o tom da banda, apresentaria The Walking Men ao mundo, deixando claro que nenhum deles seria mais a “face da banda” do que o outro, e isso era parte de sua identidade. Eram faces diferentes, que se complementavam com tal química que seria impossível simular, fingir ou ensinar. Apenas havia. Era bonito de se ver.

E acima de tudo, era rentável.

 

Oh, the fishes will laugh
As they swim out of the path
And the seagulls they'll be smiling
And the rocks on the sand
Will proudly stand
The hour that the ship comes in

And the words that are used
For to get the ship confused
Will not be understood as they're spoken
For the chains of the sea
Will have busted in the night
And will be buried at the bottom of the ocean
 

Era curioso observar como Stan cantava de forma diferente quando não estava em um palco, sob a sombra protetora de Kenny e Kyle no lugar dos holofotes. No palco, sem instrumentos, Stan parecia um animal acuado e não sabia o que fazer com as mãos. Mas ali dentro, na intimidade do seu grupo, parecia tão à vontade, em casa, vestindo um suéter azul marinho que o tornava ainda mais pálido. Os olhos tão azuis, os cabelos tão pretos, céus, como o público o amaria. Cartman já podia ver. Um bom menino cristão com um rosto tão belo que deveria ser pecado, uma charmosa timidez, uma voz rouca e doce.

Kenny olhou para Kyle de relance por um momento. Sua voz vacilou.

Ao final do verso, Cartman interveio. Fez sinal para que os músicos parassem.

-Stan. Começa a cantar sozinho aqui, esses dois próximos versos. Vocês dois vão entrar nessa parte aqui, ó… - Ele fez uma pausa, os dedos gordos deslizando pelos garranchos escritos no papel. - “And the sun will respect”… Vocês dois juntos, aqui. Kyle, uma nota mais alta. Depois o Stan segue sozinho e vocês entram na metade. E sigam juntos até o final, que nem a gente ensaiou.

O ruivo assentiu com a cabeça, tirando uma mecha de cabelo da testa.

-Vai.

 

A song will lift
As the mainsail shifts
And the boat drifts on to the shoreline
And the sun will respect
Every face on the deck
The hour that the ship comes in

Then the sands will roll
Out a carpet of gold
For your weary toes to be a-touchin'
And the ship's wise men
Will remind you once again
That the whole wide world is watchin'

 

Cartman cruzou os braços novamente, erguendo o queixo devagar. Não era um desses homens sisudos, que tem vergonha ou receio de sorrir. Cartman sorria com frequência, na verdade, mas frequentemente eram sorrisos terríveis, maliciosos, provocativos, era esse tipo de coisa que lhe dava prazer. Foi diferente dessa vez. Diferente o sorriso (quase risada) que deu assim que os rapazes deram continuidade ao trabalho. Pois sentiu algo dentro do peito que pouquíssimas vezes sentiria em sua vida: afeto. Cartman não tinha filhos para saber qual era a sensação de ajudar uma criança a dar os primeiros passos, e tampouco percebia seu próprio afeto paternal por aquele grupo, mas sabia reconhecer a exaltação de fazer parte de algo grandioso. E era exatamente isso que presenciava naquele momento. Tinha os três garotos sob suas asas, e estava pronto para soltá-los no mundo. Eram suas galinhas dos ovos de ouro.

Era impressionante como, nos últimos meses, Stan aprendera a cantar para fora, preencher o espaço com confiança. Era uma voz bonita e encorpada, não tão firme quanto poderia ser, mas calorosa. Cartman estreitou os olhos, observando-o através do vidro. Stan não olhava para nada em particular enquanto cantava. Isso precisaria mudar.

 

Oh, the foes will rise
With the sleep still in their eyes
And they'll jerk from their beds and think they're dreamin'
But they'll pinch themselves and squeal
And know that it's for real
The hour when the ship comes in

Then they'll raise their hands
Sayin' we'll meet all your demands
But we'll shout from the bow your days are numbered
And like Pharaoh's tribe
They'll be drownded in the tide
And like Goliath, they'll be conquered

 

Cartman deu um tapa nas costas do engenheiro de som, um homem branco e calvo chamado Jason, de olhos caídos e má postura.

-Eu ouço um hit. - Cartman disse com um sorriso largo que mostrava todos os dentes.

-Tomara. - Jason respondeu, encolhendo os ombros.


 

Kyle seguiu pelo corredor até a salinha onde deixavam suas mochilas e faziam as refeições. Passavam a maior parte do tempo naquele estúdio, afinal de contas. Era um espaço pequeno, com um sofá de couro marrom, uma planta de plástico, a mesa com duas cadeiras de plástico e um frigobar azul. Kyle já ouvia os passos atrás de si, o que o levou a caminhar direto para sua própria mochila sobre o sofá, um dos joelhos sobre o estofado enquanto abria o zíper sem objetivo, querendo apenas parecer ocupado quando Kenny adentrasse o ambiente. Sempre tinha cheiro de limpeza, aquela sala.

Kenny parou na porta por um instante, virando-se para dar uma boa olhada no corredor antes de adentrar a sala e fechá-la. Kyle segurou a respiração, de costas para ele, mexendo na mochila sem o menor propósito. Deus, como se sentia patético.

-Kyle.

Não se pode dizer que Kenny tenha sido ignorado, pois Kyle o olhou de relance, a voz trancada na garganta seca. Sua mão, confinada entre o casaco amassado dentro da mochila e um recipiente vazio que havia guardado um sanduíche poucas horas antes, mas agora só restavam migalhas, enfim, encontrou-se com a garrafa d’água. Kyle agradeceu silenciosamente, puxando-a para beber. Parecia tão nervoso quanto estava.

-A gente precisa conversar? - Kenny perguntou, mas o tom de interrogação não passava de um eufemismo.

-Sobre o quê?

-Kyle… - A voz de Kenny era dolorida. Ele não se atreveu a chegar perto.

-Não faz isso aqui. - Kyle disse, enfim se virando para encarar o outro, segurando a garrafa próxima aos lábios, apertando a tampinha na outra mão.

-Aonde, então?! Você foge de mim o tempo todo!

-Cala a boca, Kenny!

Um silêncio tenso se seguiu. Kenny piscou devagar, correndo as mãos ansiosas pelo rosto e subindo pelos cabelos loiros, que haviam crescido tanto desde que eles se conheceram. Kyle ficou triste ao pensar sobre aquela noite, quando o viu pela primeira vez. Não sabia dizer porquê. Isso lhe acontecia tanto ultimamente. Com um suspiro alto, Kyle fechou a garrafa e a guardou na mochila, buscando uma razão para não olhar naqueles olhos azuis. Sentia-se covarde. E idiota. Porque Kenny era seu amigo, seu amigo de verdade, que estava parado à sua frente com tanta angústia nos olhos, feito um cachorro chutado, e Kyle era responsável por isso. Não negava a responsabilidade. E ainda assim, nada do que dissesse seria capaz de aliviar aquela sensação de vergonha, de humilhação, de fracasso, de simplesmente ser uma coisa errada, uma aberração.

Já sabia o que Kenny queria dizer. O que todos eles diziam depois de uma insensatez como aquela. Que não era viado, que o uísque sobe à cabeça, que sabe que Kyle também não é, que ninguém vai saber, que nunca vai acontecer de novo.

-Não vamos fazer isso aqui. - Foi tudo o que Kyle conseguiu espremer. - Por favor.

O loiro não disse nada. Queria, mas não pôde. Até separou os lábios, sugando o ar para proferir uma palavra tão simples, tão fácil, e no entanto, nada aconteceu. Mas com seus olhos assustados, cheios de dor, Kenny disse bastante coisa. Kyle saberia disso se tivesse coragem de olhar para ele.

A porta logo se abriu, batendo de leve nas costas de Kenny. Stan botou a cabeça para dentro. E foi como se Kyle pudesse respirar novamente. Apressou-se para colocar a mochila nas costas.

-Eu tenho que ir.

-Já? - Stan perguntou, hesitante, alternando o olhar entre os dois. Eram sinais pequenos. A respiração irregular de Kenny, a mão agitada de Kyle, sua maneira de não olhar nos olhos. Stan soube que havia atravessado em meio a algo importante. - Eu pensei que a gente podia tomar alguma coisa. Faz um tempo.

-Não dá. Meu pai precisa de mim em casa. - Kyle disse rapidamente. - Tem uns contratos de venda que eu preciso revisar. Outra hora, talvez? Eu vejo vocês amanhã.

Ele já abria espaço entre Stan e Kenny para passar pela porta.

Kenny permanecia imóvel. Levou alguns segundos para notar que Stan o observava, ainda apoiado no batente, com um tipo estranho de olhar que não era exatamente confuso, não pedia explicações, mas sabia mais do que dizia em voz alta.

-O quê? - O loiro perguntou.

-O que aconteceu com vocês dois?

-Quê? - Kenny soltou uma risada nervosa, caminhando até a própria mochila. - Ele é que tá todo surtado. Eu não tenho nada com isso. Acho que é o estresse, você sabe como ele fica.

Stan passou a língua por dentro da bochecha e não refutou mais nada.

 

 

A chama do fogão se apagou. Kenny ainda mexia os ovos na panela enferrujada, ao mesmo tempo em que puxava um prato limpo (levemente úmido) do escorredor. Todos os seus pratos, os quatro ou cinco que tinha, eram de cores e tamanhos diferentes. Kenny despejou os ovos no prato apoiado naquele estreito espaço entre o balcão e a pia. O trailer estava mais bagunçado do que de costume naquela noite, um chapéu apoiado na ponta da porta aberta do seu armário, onde também guardava a vassoura, pois não havia tantas roupas assim para ocupar o minúsculo espaço. Mas seu corpo magro já se movia com facilidade pelo espaço, acostumado aos ninhos pequenos desde que nasceu. O velho rádio estava ligado em uma estação de jazz.

A temperatura caía durante a noite. Eram quase onze horas. Kenny usava camadas desordenadas de roupas, um suéter de cervos sobre um moletom amarelo, e por cima, um casaco verde musgo com o capuz rasgado. Repousou o prato sobre a mesa, com seus talheres que também não faziam parte do mesmo jogo. Foi até a geladeira para verificar as condições daquele suco de laranja que estava lá há pelo menos um mês. Kenny assobiava e balançava a cabeça sem perceber.

Ao abrir a porta da geladeira, percebeu um barulho de motor de carro se aproximando. Fechou a porta distraidamente e foi até a janela baixa sobre a pia, inclinando-se para enxergar através da cortininha, puxando-a para o lado. Tinha as sobrancelhas franzidas. Via os faróis cegantes de um veículo, mas foi somente quando ele estacionou em seu terreno que Kenny, enfim, reconheceu o carro de Kyle. Seu pai o havia dado de presente de aniversário naquele ano, um Chevy Impala novinho. Kenny sempre sentia vontade de fazer carinho naquele carro, de tão bonito que era.

Secou as mãos rapidamente no pano de cozinha pendurado na cadeira e foi até a porta do trailer, encostada para manter o frio lá fora. As luzes externas (uma gambiarra que Kenny pendurou com luzes de natal para poder enxergar à noite) estavam acesas, pois isso acalmava as galinhas. Kenny pôs os pés para fora e se aproximou devagar enquanto Kyle saía do carro. O olhar que o ruivo o ofereceu fez com que o coração de Kenny congelasse por um instante. Porra, fazia um frio desgraçado lá fora. Haveria geada naquela noite, certamente.

-Ei. - Kenny disse, tentando não soar tão surpreso quanto estava.

Kyle parecia assustado. Seus pés levaram alguns segundos para tomar coragem de atravessar o pasto, aproximando-se de Kenny. Ele segurava um dos seus pulsos, umedecia os lábios ressecados pelo frio.

O tempo que Kyle demorou para responder se estendeu por uma eternidade na perspectiva de Kenny McCormick. Ouviu Barnabé relinchando ao longe, atrás do trailer, e o som que ele fazia ao beber água da tina. A respiração dos dois emitia vapor. A chuva daquela tarde havia cessado, abrindo um estrelado céu sob suas cabeças. Durante esse tempo, Kenny se perguntou se deveria estar dizendo alguma coisa. Não era bom com palavras que não fossem escritas em um guardanapo ou cantadas.

-Você não podia ter feito o que fez hoje. - Kyle disse, finalmente. E Kenny pôde, enfim, respirar aliviado. Chegou a fechar os olhos, abaixando um pouco a cabeça, mexendo os pés sobre a terra úmida. - Tem hora e lugar pra falar dessas coisas. Você não sabe o que podia ter acontecido.

“E você sabe”, Kenny constatou de forma genuína, um aperto fraco em seu coração. Apenas assentiu devagar com a cabeça.

-Certo.

E silêncio, novamente, silêncio dolorido e constrangedor. Kyle pôs as mãos no bolso do casaco e percorreu o olhar pela extensão do terreno no escuro da noite, o formato das árvores secas ao longe, os sons dos animais que estavam distantes demais da luz do trailer para serem vistos.

-Eu quero conversar. Se você ainda quiser. - Disse, por fim.

E eles entraram.

Kenny desligou o rádio e começou a abrir espaço, mudando de lugar os objetos que se acumulavam sobre a cadeira, a calça jogada, os tênis no chão, o isqueiro, a agenda rasgada, as chaves do carro, todas essas pequenas coisas que se espalham como se tivessem vida própria. Apontou com a cabeça para que Kyle se sentasse, mas o ruivo não se moveu, parado próximo à porta enquanto Kenny colocava as coisas sobre a cama. Foi o primeiro momento em que Kyle se deu conta de que o outro parecia assustado.

Kenny passou a mão pelo topo da cabeça, alisando para trás os cabelos loiros, mordendo o lábio inferior.

-Kyle. - O loiro começou, não de uma maneira vaga, como às vezes se sussurra um nome sem saber o que dizer em seguida. Não, ele sabia. E o disse com firmeza, mas foi interrompido por aquela voz que havia se tornado a preferida de Kenny no mundo inteiro.

-Eu bebi muito naquela noite. Muito. Porque eu tava com medo. E triste, muito triste mesmo quando você me encontrou. Mas eu nunca quis te desrespeitar. Tá bom? Me desculpa. Por ter deixado que aquilo acontecer, por… Por ter sido fraco desse jeito, por ter agido como… Me desculpa. E me desculpa, também, por ter te evitado. Eu não acho que você possa imaginar o quanto isso é desconfortável pra mim, e se eu pudesse não olhar na sua cara pro resto da vida… Mas eu não posso, porque eu me importo com você. Então eu tô aqui, pedindo desculpas. E eu quero que você saiba que nada parecido com isso vai acontecer de novo. Eu não sabia o que eu tava fazendo.

Quando parou de falar, Kyle sentiu medo. Medo real e genuíno, pois agora vinha a pior parte, a resposta. Falar era fácil. Difícil era lidar com a hostilidade, o soco, ou ainda pior, as palavras gentis que Kenny provavelmente ofereceria. “Eu sei que você não é bicha”, aquele tapa amigável no ombro, a facilidade em esquecer. Essa, sim, era a parte dolorosa.

Mas em vez disso, em vez de palavras leves e um tapinha no ombro, Kenny começou a rir. Não uma gargalhada alta ou coisa do gênero, apenas uma risadinha fraca, cobrindo a boca, como se nem mesmo ele esperasse reagir de tal forma. Kyle quis ir embora. Não estar ali, simplesmente. Mas fugir de novo seria covardia demais, até para ele. Adiar o inevitável.

-Eu disse algo engraçado? - Kyle perguntou.

Kenny estava apoiado no balcão, naquele estreito espaço que não permitia muita distância entre os dois. Kyle nem mesmo notou o prato de ovos mexidos esperando sobre a mesa, mas para ser honesto, Kenny também havia se esquecido do seu jantar. Mantinha a cabeça baixa, esfregando os olhos com os dedos enquanto tentava conter o sorriso.

-Não. - Murmurou, enfim voltando a encará-lo. - Desculpa. É só que… Uau.

-O quê?!

-Você é tão autocentrado que ignorou completamente o fato de que fui eu que te beijei. - Kenny disse sem um pingo de raiva ou acusação. Embora o cérebro de Kyle sentisse que deveria se ofender com aquelas palavras, não conseguia. Pois Kenny falava com doçura, quase com carinho, uma simplicidade de quem afirma a coisa mais verdadeira do mundo. - E sinceramente, eu não sinto vontade de me desculpar por isso. Deveria? Porque se você achar que eu devo, eu me desculpo. Se eu me aproveitei… Mas por algum motivo, eu não consigo achar que aquilo foi errado.

A verdade era que Kenny morria de medo. Falava com uma tranquilidade sóbria, uma lucidez tão clara, pois era a verdade que sentia em seu peito. Que não era errado. E o medo de Kyle o estabilizava. Mas no fundo, todas as vezes em que Kenny McCormick sentiu aquelas vontades, o medo era muito mais forte. Medo de que descobrissem, medo de se expôr, medo de agir. E após aquele momento, embriagado e encantado demais pelo rosto choroso de Kyle Broflovski naquela noite, nenhum medo foi maior do que a adrenalina, o prazer, o alívio de senti-lo. Kenny poderia passar o resto da vida sem nenhuma dessas coisas.

Poderia, sim. Mas não achava que devesse. Porque, pela forma como os olhos aterrorizados de Kyle o encaravam, a maneira como percorriam seu corpo, como Kyle agia quando seu braço roçava no de Kenny, aquele sorriso no canto dos lábios que tantas vezes apareceu, Kenny construiu uma sólida certeza de que não sentia essas coisas sozinho.

-Você não sabe o que diz. - Kyle murmurou enquanto Kenny se aproximava. Mas não saiu do lugar. Não resistiu, nem mesmo quando a mão quente de Kenny McCormick tocou sua nuca, ainda mantendo uma respeitosa distância, mas os seus olhos pareciam tão perto que queimavam, os olhos azuis mais gentis do mundo. Kyle virou o rosto de lado por um instante, inebriado pela sensação daquela palma, pelo polegar que o tocava num ponto tão sensível, movendo-se tão devagar que mal parecia uma carícia, mas era.

-Talvez não. - Kenny disse baixinho, tão baixinho que mal era audível, aproximando o rosto apenas o bastante para descansar sua testa contra a de Kyle, que fechou os olhos quase que por instinto. Não havia mais ninguém ali. Ninguém para invadi-los, ninguém para humilhá-los, ninguém para dizer que aquilo era profano. Talvez fosse, um pouco, Kenny não tinha certeza. Não se importava, também. Trouxe a outra mão à lateral do pescoço de Kyle e respirou com ele até que seus músculos relaxassem, abrindo os olhos de vez em quando para fitar aquele rosto tão belo, tão próximo, que trazia ao coração de Kenny uma sensação que havia sido esquecida. Kenny beijou a maçã de seu rosto primeiro, e Kyle estremeceu de olhos fechados, envolvendo o loiro em seus braços com angústia.

Não foi preciso muito mais do que isso para que Kenny sentisse a permissividade, o convite para entrar. E o beijou, firme e lentamente, empurrando-o contra o estreito espaço entre a cabine da cozinha e a porta de entrada do trailer. Não fazia frio ali dentro, não mais. Tudo era quente, úmido, pleno. Pela primeira vez em toda a desgraçada história de Kenny McCormick, tudo estava em paz.



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