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História Walking Men - Something in the way she moves


Escrita por: caulaty

Capítulo 9 - Something in the way she moves


Verão de 1960 - Nashville, Tennessee

 

O pé de Kenny encontrou conforto entre o par de panturrilhas em sua cama, enfiando-se entre as duas para roubar o calor daquela pele, mergulhado demais em um estado entre sono e lucidez para saber o que fazia. Kyle não resmungou, até sorriu de olhos fechados, roçando as costas no peito nu de Kenny ao se ajeitar em seus braços, mudando a posição com que repousava a cabeça no travesseiro fino. A luz matinal invadia o trailer, junto com o cantar dos pássaros. Era um canto feio e esganiçado, mas Kenny gostava de ouvi-los, como gostava do cheiro do pasto pela manhã, dos olhos inchados de sono do cavalo, gostava do café preto e do corpo quente de Kyle. Passeava o nariz pela nuca dele preguiçosamente, inalando o cheiro de shampoo e da pele, apertando-o com mais vontade. Sorria sem perceber.

Kenny perdia calor com tanta facilidade que as extremidades de seu corpo estavam sempre geladas. Era delicioso sentir o toque do corpo fresco contra sua pele úmida de suor após uma noite longa, mal dormida por excesso de paixão. Esticando o pescoço preguiçosamente, Kenny beijou-lhe a face inúmeras vezes no mesmo lugar, abraçando-o em volta da cabeça e puxando-o contra seu peito, rindo do resmungo baixo e sonolento do ruivo. Virou o corpo de Kyle de lado como se ele fosse uma boneca de pano, não encontrando a menor resistência – nenhum dos dois tinha os olhos abertos – e escorregou pelo seu corpo para morder a carne pálida da lateral de seu tronco. Kyle se encolheu pelas cócegas e a sensibilidade, sorrindo, apesar da ruga irritada entre as sobrancelhas, indicando que gostaria de dormir mais.

Foi então que Kenny deu uma boa olhada nele, as pálpebras resistindo a se abrirem por completo. Nesse horário da manhã, quando os animais ainda dormiam e o único som externo era o canto dos pássaros, Kenny McCormick pensava uma porção de coisas. Nunca foi um homem de pensar demais; sempre foi movido pelo impulso, pela vontade, nunca teve muito o que perder. Mas no calor do sol matinal, enroscado no corpo de Kyle, era difícil não olhar para trás, pois durante toda a sua vida, Kenny nunca teria se imaginado naquela cama com aquele ser.

A primeira noite em que se entrelaçaram um ao outro, Kenny fez o possível para não parecer tão assustado quanto estava. Sentia-se feito um menino novamente, tímido e apavorado, mas o corpo ardia em tanto desejo que parecia saber agir por conta própria. Kyle percebeu a sua inquietação, Kenny sabia disso. Tanto que montou sobre ele, delicado, firme, arrancou-lhe a camiseta e o segurou pelas laterais do pescoço, forçando Kenny a enxergá-lo. Naquele momento, o loiro umedeceu os lábios e pensou que pudesse chorar, mas não fazia ideia do motivo. Sentia-se aliviado, talvez extasiado demais para pensar, deixando que as mãos percorressem a cintura e o peito de Kyle, explorando sob as palmas aquelas formas que eram tão distintas das mulheres com as quais Kenny se deitara.

Era diferente, tudo era diferente. O cheiro era mais quente e confortável, sem qualquer camada de perfume para disfarçar o aroma da pele úmida. As costas eram mais largas, ainda que esguias e macias, e Kenny se perdeu a passar a língua pela extensão da coluna vertebral dele, da base até o pescoço, sorrindo ao sentir que ele se arrepiava como toda mulher. Não sabia ao certo o que estava fazendo, mas sabia que gostava. Gostava de esfregar-se contra a coxa dele, rígido, enquanto chupava seu pescoço com vigor o bastante para deixar marcas. Kyle cravava as unhas em seus ombros ao agarrá-lo, porque doía, mas os sons que deixavam seus lábios não podiam indicar nada de ruim.

Mesmo assim, enrolou-se na hesitação de fazer qualquer coisa além disso, por mais que quisesse (e Deus, como queria, só ele sabia o quanto).

-Eu nunca… - Ele murmurou, de olhos fechados, a testa colada na de Kyle, os lábios ainda meio encaixados.

Aqueles olhos verdes tão grandes o estudaram sem que ele se afastasse.

Foi preciso que Kyle o tomasse pela mão, com uma certeza nos olhos da qual Kenny jamais se esqueceria, deitando-o de costas e subindo sobre ele, já totalmente despido, nenhum pingo de medo em seu rosto. Não é como se Kenny não soubesse a forma como as coisas eram feitas. Também não era como se não tivesse imaginado centenas de vezes. Mas encontrou-se paralisado no momento em que Kyle pressionou seu membro rígido entre as nádegas, soltando o gemido fino mais doce que Kenny já ouvira, erguendo o quadril para encaixar sua glande na entrada, besuntando-se de saliva antes de pressionar-se para baixo, firme e lento, até que Kenny estivesse por inteiro dentro dele. E nada poderia ter preparado Kenny McCormick para as coisas que sentiria naquela noite.

Perdeu o medo em poucos segundos, assim que conseguiu retomar o fôlego. Qualquer receio foi esquecido pela ardência pulsante que crescia dentro dele, a necessidade de devorar, de tomar, de tê-lo. Não se lembrava em que momento exato virou por cima de Kyle para melhor controlar como entrava e saía de dentro dele, sem grande competência, sem técnica, um ato desajeitado, imundo e ansioso, movido por desespero, por ardor. Arfava por ar contra os lábios de Kyle, segurando sua cabeça com mãos inquietas, sem medir a força, deixando a pele molhada escorregar pela dele, o ar quente se misturando entre os dois. Não se sabia mais onde acabava um e começava o outro.

Kenny jamais sentira coisa parecida antes, e não sabia dizer se era por Kyle ser um homem ou apenas por ser… Por ser ele.

Desde aquela noite, não conseguia pensar em mais nada que não fosse o calor de Kyle, a sensação da sua pele suada contra a dele, a sensação de penetrá-lo, de abraçá-lo, de passar a língua por tudo o que pudesse alcançar, beijá-lo profundamente até que o ar faltasse.

Aquela manhã quente era apenas mais uma, que se misturava a todas as outras, pois deixar o ninho que fizeram daquele trailer era um esforço evitado a todo custo. Sabiam que era o único lugar do mundo em que poderiam se tocar, segurar um ao outro, olhar-se como lhes era natural. Kenny ergueu a cabeça, agora bem acordado, apoiando o cotovelo no colchão e a mão na bochecha, observando Kyle com olhos reluzentes. O outro não dormia, Kenny sabia disso pela respiração, a forma com que o peito nu de Kyle subia e descia devagar. Mas mantinha um dos braços sobre os olhos para protegê-los da claridade que tomava o trailer.

Quando o loiro fez menção de se levantar, Kyle o prendeu entre as coxas e grunhiu, insatisfeito. Kenny soltou uma gargalhada rouca, a voz ainda sonolenta.

-Eu tenho que dar comida pras galinhas. - Explicou.

Outro grunhido veio em resposta. Kenny passou a língua pelo lábio superior antes de percorrer as mãos pela barriga de Kyle, subindo pelo peito, movendo as pontas dos dedos rapidamente para fazer-lhe cócegas de leve. Kyle riu, enfim olhando para ele de volta, mas não o soltou.

-As galinhas podem esperar.

Por um instante, Kenny não se moveu. E com o ímpeto de um cavalo selvagem, debruçou-se sobre Kyle para beijar-lhe os lábios de maneira úmida, barulhenta, invasiva. Kyle sorriu contra a boca dele, abraçando-o pelo pescoço, relaxando a pressão das pernas em torno de seu tronco. Kenny não chegou a se deitar sobre ele novamente, logo escorregando para fora da cama, deixando Kyle ali, aberto, a boca avermelhada pela irritação que a barba do loiro provocava em sua pele.

Ao se pôr de pé, enxergando a paisagem fora das janelas, Kenny estreitou os olhos ao perceber uma caminhonete que se aproximava à distância na estrada. O som do motor crescia conforme o carro chegava mais perto da propriedade, fazendo a curva para adentrar o terreno. Logo, estava próximo o bastante para Kenny reconhecer a caminhonete de Randy. A essa altura, Kyle já parecia pálido feito um fantasma.

-É o Stan. - Kenny disse.

-Puta que pariu. - Kyle resmungou, erguendo-se feito um furacão para encontrar suas roupas. Esquecera-se que Kenny o despiu lá fora na noite anterior, sobre um manto de flanela; uma decisão terrivelmente irresponsável, mas estavam bêbados demais para pensar e o trailer parecia isolado do resto do mundo. Ninguém passava por ali.

Kenny jogou um par de calças e uma camisa azul a ele.

-Por que diabos ele tá vindo te visitar a essa hora?!

-Sei lá!

-Caralho, Stan. - Kyle resmungou enquanto abotoava as calças, os olhos pesados de sono, os cabelos desgranhados. Kenny quis ajeitá-los um pouco, mas de repente, sentia-se aflito de tocá-lo. Precisaria aprender a achar antinatural o que havia entre eles na presença de outras pessoas.

Kyle mal teve tempo de vestir a camisa apressadamente antes de ouvir os passos agitados de Stanley se aproximando da porta do trailer. Bateu como se a vida dependesse disso, certamente esperando que o amigo estivesse adormecido. Por um segundo, Kenny ficou preocupado. Não conseguia pensar em uma boa notícia sequer que trouxesse um homem tão cedo assim à casa de outro. Lançou um olhar inseguro a Kyle, que parecia assustado, parado ali com a camisa de flanela que não combinava com ele, mas o deixava indescritivelmente bonito. Tinha os cabelos armados e selvagens, os lábios entreabertos como se estivesse pronto para dizer alguma coisa, segurando o próprio pulso. Kenny encheu os pulmões de ar e abriu a porta.

Stan invadiu o trailer feito um tufão, segurando o chapéu preto contra o peito, mostrando todos os dentes em um sorriso incomum. Respirava pesado como um cachorro emocionado com a chegada do dono. Apesar de colocar os olhos em Kyle, não houve qualquer estranheza.

-Ah, que bom, você também está aí. - Comentou com sinceridade, os olhos reluzindo por alguma coisa que Kyle desconhecia. As pupilas estavam tão agitadas que não se focavam em coisa alguma.

-Você sabe que horas são? - Kyle perguntou. Kenny, no entanto, coçava a cabeça e se movia pelo estreito espaço do trailer para abrir a cabine onde estava guardado o pó de café.

-Eu vou ser pai.

Os olhos de Kyle cresceram. Kenny continuou segurando o saco de pó de café sustentado no ar, como se não fizesse ideia do que fazer com aquilo. Esfregou os olhos inchados de sono com a outra mão.

-A Annie tá grávida. - Stan prosseguiu, como se fosse necessário.

-Meu Deus. - Kyle murmurou.

Por um instante, houve medo. Só um instante, um segundo que se diluiu em uma gargalhada, duas, três. Stan abriu os braços e soltou um riso do qual Kenny McCormick se lembraria até o dia de sua morte, o riso do homem mais feliz do mundo. Foi o primeiro a abraçá-lo, e Kyle continuou ali de pé, sorrindo largo, receoso em invadir o abraço de dois amigos antigos. Era um receio idiota, Kenny pensava, puxando-o para se juntar a eles.

-Caralho, Stanny-boy. - O loiro dizia, beijando-lhe a testa. - Quando foi que você cresceu desse jeito?!

 

Naquele verão, algumas coisas mudaram. Enquanto se encontravam para reuniões de finalização do disco e, ocasionalmente, estendiam o turno em um bar para uma ou duas cervejas geladas, os momentos em que os três estavam sozinhos tornaram-se raros. Stanley passava todo o tempo livre trabalhando feito um cão, tratando os cavalos puro-sangue de quantos fazendeiros o contratassem, constantemente ansioso pela responsabilidade de sustentar uma vida. Tinha olheiras profundas de quem dormia pouco, mas um sorriso puro de recém-casado que valia por toda a exaustão. Tocar lhe rejuvenescia a alma. Annie estava frequentemente lá, com suas cestas de pãezinhos frescos e suas palavras de encorajamento, com uma pequena barriga que começou a aparecer melhor em meados de agosto. Kyle passou a amá-la também.

O primeiro disco de The Walking Men foi lançado no dia 25 de julho de 1960. Chamava-se “3” e sua capa consistia em uma colorida fotografia de uma criança tocando banjo, uma simpática escolha que, segundo Cartman, teria um apelo de vendas gigantesco. Com o passar dos meses, o deslumbre com o disco foi se diluindo, dando lugar às questões da vida real. Nenhum deles esperava tirar dinheiro real daquilo, mas cada um dos três era movido por um intenso desejo de concluir um trabalho concreto antes de retornar às mazelas do trabalho no campo (ou, no caso de Kyle, no escritório). De qualquer maneira, os três foram juntos visitar as lojas de disco do centro de Nashville em um sábado de manhã para contemplar sua obra ocupando um lugar, ainda que tímido, nas prateleiras. Agora, o disco era real. E a vida de ninguém havia mudado em função disso.

O preço da desistência de um diploma veio mais cedo e mais caro do que esperava. Kyle passava seus dias confinado no escritório do pai, observando o mundo lá fora por uma janela estreita, convencido de que lhe eram designadas tarefas falsas que serviam somente como punição. A mãe, silenciosa, trazia-lhe chá e desejava um bom trabalho, observando-o com seus olhos de águia. Sheila Broflovski percebia. Percebia que Kyle não obtinha a menor felicidade daquela situação, de revisar as quantidades de sacos de ração compradas para os cavalos, carimbar documentos, contar hectares de terra, fazer telefonemas para possíveis compradores de cabeças de gado ou de um alazão especial. No entanto, Sheila percebia também que o filho realizava aquelas tarefas com uma certa satisfação, um sorriso pequeno e inabalável no rosto, como se estivesse sempre com a cabeça em outro lugar.

E estava. Na excitação de lançar o disco, sim, mas especialmente, na excitação de Kenny McCormick. Kyle carregava um calor dentro do peito toda vez que se separava dele, o calor da lembrança do abraço e da eminência de encontrá-lo novamente. Passavam os finais de semana refugiados do resto do mundo, levando o trailer de Kenny para terras ainda mais remotas, onde não encontrariam ninguém que os fizesse sentir doentes. Visitavam cachoeiras, rios e lagos para nadar e pescar, cantavam canções à luz das estrelas, amavam-se a céu aberto (somente quando embriagados demais para pensar), andavam no mesmo cavalo por planícies vastas, tomavam banho juntos no chuveiro externo no pasto onde Kenny deixava seu trailer. Naquela época, esqueciam-se dos instrumentos.

Era nisso que Kyle pensava certa tarde, sozinho em casa, comendo biscoitos de pé na cozinha. Tinha uma mão na cintura e o outro cotovelo apoiado na bancada, observando o verde intenso da grama através da janela. Era um dia de sol radiante. Kyle se perguntava se Kenny também estaria pensando nele enquanto limpava os estábulos de Darryl Weathers sob o calor escaldante do sol.

Seus pensamentos foram interrompidos pelo som do telefone vermelho do corredor, baixo e insistente. Kyle bateu as migalhas da mão e chupou os dedos antes de se dirigir ao estreito corredor com uma janela no final, fechada por uma cortina branca que vazava toda a luz externa. As paredes eram decoradas por um papel verde florido, quadros em molduras douradas com fotos de família e um espelho que obrigava Kyle a encarar o próprio reflexo toda vez que falava naquele telefone. Não gostava da sensação.

-Alô?

Não houve resposta imediata. Kyle franziu o cenho, impaciente, preparando-se para falar pela segunda vez quando uma voz surgiu do outro lado da linha. Uma voz conhecida.

-Logo você foi atender. Que sorte a minha.

Kyle olhou em volta, desconfortável por estar sendo observado, mesmo que não houvesse ninguém em casa. A voz de Gregory o deixava nesse estado de alerta. Céus, há quanto tempo não falava com ele?

-Quem é? - Perguntou, sem saber exatamente porquê.

A resposta foi uma risada curta.

-Eu sabia que você me esqueceria rápido.

O ruivo respirou fundo, fechando os olhos. Tentou relaxar os músculos tensos dos ombros, inclinando-se para frente, ignorando o próprio reflexo. Sentia um buraco na região do estômago e do coração.

-Oi, Gregory. - Disse. Parecia a única coisa a se dizer.

-Oi, Kyle.

Por alguns segundos, ninguém disse nada. De certa forma, aquilo foi reconfortante, pois Gregory parecia tão desconfortável quanto ele. Era bom sentir que o outro também não fazia ideia do que dizer. Kyle segurou o telefone vermelho com o ombro, enrolando-se um pouco no fio ao se virar, olhando de relance para o quadro de girassóis atrás dele, refletido no espelho.

-Você lançou um disco. - Gregory disse de repente.

Kyle tentou não sorrir.

-Lancei.

O silêncio prosseguiu. Dessa vez, Kyle não soube dizer durante quanto tempo. Ao fundo, ouvia a melodia suave de um violão e uma gaita, uma canção que lhe era familiar. Tão familiar quanto a voz de Kenny McCormick cantando aquela música, a mesma que Kenny cantou para ele na manhã seguinte à primeira noite que tiveram juntos. Kyle lembrava-se tão bem de acordar ao som do violão desafinado, a voz rouca de Kenny preenchendo todo o espaço estreito do trailer. Tinha as costas suadas e os cabelos limpos, ainda úmidos de um banho gelado que Kenny tomara antes do amanhecer.

 

There's something in the way she moves,
Or looks my way, or calls my name,
That seems to leave this troubled world behind.
If I'm feeling down and blue,
Or troubled by some foolish game,
She always seems to make me change my mind.

 

Agora, através do telefone, a música não passava de um estranho ruído que lhe causava frio na boca do estômago.

-Foi um pouco estranho ouvir a sua voz assim, depois de tanto tempo. - Gregory finalmente disse. Queria dizer tantas outras coisas, mas não sabia como. Kyle podia sentir isso. Ele estava em sua imaculada casa de madeira branca em Houston, os cabelos arrumados como sempre, somente uma mecha de fios loiros caindo propositalmente sobre a testa. Vestia uma camisa rosa bebê de mangas dobradas até os cotovelos. Com um suspiro resignado, antes que a conversa tomasse um rumo emotivo demais, Gregory prosseguiu. - É um belo disco.

-Você acha?

-É incrível, Kyle. Eu fico muito feliz por você… De verdade. Espero que saiba disso.

-Ah. Obrigado, Gregory. É uma boa surpresa você ligar.

-É? Eu teria ligado antes, mas não sabia se você queria falar comigo.

 

N'(and) I feel fine anytime she's around me now,
She's around me now
Almost all the time.
'N'(and) If I'm well you can tell that she's been with me now,
'N'(and) she's been with me now
Quite a long, long time
And I feel fine

 

-Eu ainda não sei se quero falar com você. - Kyle disse, brincando, mas Gregory não riu. O ruivo encolheu os ombros. No silêncio, ainda podia escutar a música tocando ao fundo. E com ela, podia imaginar o olhar melancólico no rosto de Gregory, aquele que só aparecia de vez em quando, para as pessoas que estavam próximas o suficiente dele para perceber esses momentos de descuido. Não sentia a menor raiva daquele homem. Não conseguiria, mesmo que quisesse. Amava-o demais, talvez não mais como homem, mas como qualquer outra coisa.

E o rosto de Kenny voltava à sua mente, cantando a canção de costas para ele, olhando por cima do ombro e abrindo um sorriso tímido ao notar que era observado. Kyle engatinhou sobre a cama e tomou seu rosto nas duas mãos, beijando-o com um desejo repentino e incontrolável que o aterrorizava. Os dedos de Kenny se esqueceram de tocar algumas notas no violão.

-Eu sinto muito por como as coisas…

-Você não tem que fazer isso.

-Eu sei. Mas quero. - Kyle o ouviu rindo do outro lado da linha. - Já faz algum tempo que quero… Sabe, você saiu no jornal aqui. Quer dizer, uma nota pequenininha sobre o disco, sua cidade parece orgulhosa de você. Foi assim que eu soube. Comprei o disco imediatamente. E… Não tinha me dado conta de como sinto falta de ouvir você cantar.

-É por isso que você ligou?

Houve silêncio. Kyle podia ouvir a respiração de Gregory e a música ao fundo.

 

Every now and then the things I lean on lose their meaning,
And I find myself careening
Into places where I should not let me go.
She has the power to go where no one else can find me,
Yes, and to silently remind me
Of the happiness and good times that I know, you know.
Well I said I just got to know that:

 

-Eu vou me casar na primavera. - Gregory disse.

Kyle ainda podia sentir o gosto da língua de Kenny na sua, o gosto do suor na sua pele e o brilho naqueles olhos azuis ao segurar seu rosto para encará-lo, sempre com cara de quem gostava do que via. Lembrava-se da maneira com que Kenny selava os lábios nos seus e percorria a ponta do nariz pela sua como uma brincadeira de criança. E, mesmo sem saber exatamente o motivo, nunca havia sido daquela forma com Gregory.

Nem melhor, nem pior.

Ainda assim, Kyle permaneceu imóvel naquele corredor iluminado, agora encarando o próprio reflexo com profundidade. Enxergava olheiras escuras sob os olhos, sardas na pele, um nariz protuberante, os cabelos vermelhos e armados sob os quais ele se escondia. E não sabia como se sentir. Não sabia o que dizer.

-Ah. - Foi o que lhe escapou dos lábios.

-Não sei se isso… Importa pra você ou não. Queria contar pessoalmente, mas… Não faço ideia de quando… Se é que vamos nos ver de novo. De qualquer forma, é isso.

“É isso”, Kyle pensou.

 

It isn't what she's got to say
Or how she thinks or where she's been.
To me, the words are nice, the way they sound.
I like to hear them best that way -
It doesn't much matter what they mean,
Well she says them mostly just to calm me down

 

Não se sentia triste, mas havia algo de estranho habitando a boca do seu estômago; não propriamente uma dor, apenas um desconforto, uma sensibilidade exacerbada.

-Quem é ela? - Kyle perguntou, não deixando que um pingo desse desconforto transparecesse em sua voz.

-Wendy. A filha do Testaburger da empresa de tratores, sabe?

-É claro que sei. Ela ganhou de mim em um concurso de soletrar quando eu tinha nove anos.

-Ah, que crueldade. - Gregory riu. Tinha uma dessas risadas que poderia estar em um comercial de detergente, cheia e simpática, mostrando seus dentes brancos e retos. - Bem. É uma mulher de fibra, acho que você gostaria dela. Diria até que vocês se parecem.

Havia tantas coisas que Kyle poderia ter dito a esse respeito, mas apenas engoliu o acumulo de saliva na boca e desviou o olhar do espelho, pigarreando.

-Parabéns. - Disse, por fim. - Eu fico feliz por você.

-Não precisa fingir, se não é verdade.

-Eu sei.

Novamente, houve uma pausa. A pausa que leva duas pessoas à beira de um precipício que decide o rumo da conversa, os territórios a serem desbravados, dependendo da coragem que um dos dois toma para falar primeiro as coisas que realmente se quer dizer.

No entanto, assim que Gregory separou os lábios para adentrar tal território, Kyle disse:

-Foi bom falar com você.

Do outro lado da linha, Gregory esboçou um sorriso triste.

-Me avise se vier ao Texas, sim? Eu adoraria ver você.

-Claro. - Kyle disse sem se preocupar com o grau de honestidade da resposta, repousando o telefone no gancho, encarando-o durante algum tempo, agora, imerso no silêncio da casa. O vento lá fora balançava um pouco as cortinas e as folhas no vaso.

Kyle ergueu a cabeça devagar, do telefone vermelho ao próprio reflexo dos cabelos, tão vermelhos quanto, e por um instante, quase sorriu. Quase.



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